No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um artigo sobre “Pio XI, o papa de Mussolini”, Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.
Achille Ratti, arcebispo de Milão, foi eleito papa, em fevereiro de 1922, ao quarto dia e à 14.ª votação. Escolheu o nome de Pio XI em homenagem a Pio IX, o papa da sua juventude, e a Pio X, papa centralista e antimodernista que o convocou para dirigir a Biblioteca do Vaticano. Em outubro do mesmo ano, Mussolini e os fascistas sequestraram o Estado italiano e iniciaram uma perseguição sanguinolenta a todas as oposições, que culminou numa férrea ditadura do Partido Nacional Fascista. As relações entre o sucessor de Pedro e o condottiere fascista foram instáveis. Porém, ambos abominavam a democracia liberal e o comunismo e intuíram que necessitavam um do outro para concretizarem os seus ambiciosos projetos políticos. Estabeleceram, por isso, um pacto colaborativo. Pio XI removeu os obstáculos que dificultavam a ascensão de Mussolini, elevou o Duce ao estatuto de «homem providencial» e justificou muitas das políticas fascistas tirânicas e violentas. Em contrapartida, Mussolini (que era um ateu e anticlerical afamado) restaurou os privilégios que a Igreja Católica usufruía antes da unificação da Itália, cobriu-a com dinheiro, reconheceu a Universidade Católica, opôs-se à lei do divórcio, salvou o Banco de Roma, que tinha ligações perigosas com o Vaticano e estava no limiar da bancarrota, perseguiu muitos opositores da Igreja, combateu o protestantismo, entre várias outras prerrogativas. Esse pacto foi selado com os Acordos de Latrão (1928). Tais acordos reconheciam a cidade do Vaticano como território soberano sob a exclusiva governança papal, incluíam uma concordata que tornava a Igreja Católica a única religião do Estado italiano, o qual, por sua vez, reconhecia várias celebrações católicas como feriados públicos, autenticava os casamentos católicos, decretava a instrução religiosa católica nas escolas primárias e secundárias e aceitava o direito de os grupos da Ação Católica operarem em liberdade. Os acordos implicavam ainda ajustes financeiros em que a Itália ressarcia o Vaticano em muitos milhões de liras (em 2013, o equivalente a cerca de um bilião de dólares americanos) em troca de um acordo em que a Santa Sé abdicava de todas as reivindicações pela perda dos seus Estados Pontifícios.
Apesar da assinatura dos Acordos de Latrão, os dois chefes, que tinham temperamentos irascíveis e despóticos, nem sempre estiveram em sintonia. Pio XI confrontou Mussolini não propriamente para denunciar as ações violentas e as deliberações autocráticas do regime, mas para exigir que a revolução clerical-fascista iniciada com os Acordos de Latrão fosse cumprida. Mormente, exigiu que o Estado banisse livros, filmes e peças de teatro considerados ofensivos ao poder e à moralidade da Igreja, restringisse direitos aos protestantes, proibisse ex-padres de lecionar nas escolas públicas e respeitasse a liberdade da Ação Católica.
Em 1938, Hitler visitou Roma, aproveitando a ocasião para coagir Mussolini a decretar leis raciais antissemitas e a envolver-se na guerra aos judeus. Durante vários anos, o Duce teve uma amante e conselheira judia chamada Margherita Sarfatti e chegou a beneficiar do apoio de judeus. Contudo, numa nova deriva pragmática do fascismo, resolveu obliterar o passado e subscrever as teorias delirantes de que o povo latino italiano era, afinal, de origem ariana e que os judeus estavam ao serviço do bolchevismo, do capitalismo e da maçonaria e por isso conspiravam secretamente contra a Igreja e os fascistas.
Pio XI não tinha simpatia por Hitler e pelo regime nazi alemão, que considerou um Estado pagão agressivo que desrespeitava a concordata assinada, em 1933, com o Vaticano, coartava a ação da Igreja Católica e perseguia o seu clero. Denunciou isso mesmo, em 1937, na encíclica Mit Brennender Sorge. Mais: não se revia nas novas leis antissemitas fascistas e, na fase final da sua vida, quando se encontrava com a saúde debilitada e já à beira da morte, ter-se-á arrependido do apoio concedido a Mussolini. Esse remorso levou-o a preparar uma encíclica secreta que denunciava o racismo. Todavia, as suas posições não foram subscritas pela Cúria nem por outros setores mais conservadores e influentes da Igreja. O documento ficou concluído, em 1939, e não era excessivamente contundente com o fascismo, mas Pio XI faleceu antes de o divulgar ao mundo. Eugénio Pacelli — que tinha sido núncio apostólico na Alemanha (Baviera e Berlim) e depois desempenhou as funções de secretário de Estado e homem de confiança de Pio XI, tendo nesse cargo assinado a concordata entre a Santa Sé e a Alemanha nazi — seria eleito papa, com o nome de Pio XII, em 1939. O cardeal que teve a honra de depositar a tiara papal sobre a cabeça de Pacelli chamava-se Caccia Dominioni e era o homem sobre o qual a polícia fascista tinha escondido o rasto de acusações de pederastia. O novo papa era visto pela polícia secreta do Duce como «grande admirador» de Mussolini e «sincero amigo» do regime fascista. Talvez por isso, não respeitou os derradeiros desejos do seu antecessor. Acabou por ocultar a encíclica antirracista de Pio XI (cujo conteúdo só foi conhecido em 2006, quando foram abertos os arquivos do Vaticano relativos a este papa) e o pontificado de Pio XII optou por uma abordagem demasiado próxima e conciliadora com a Itália fascista e a Alemanha nazi. O Vaticano terá mesmo feito um acordo secreto com Mussolini que implicou a abstenção de críticas às infames leis raciais antissemitas publicadas em Itália em troca de um melhor tratamento concedido às organizações católicas. Durante o último ano e meio da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cerca de 7500 judeus de Itália foram deportados para Auschwitz, onde muito poucos sobreviveram.
Tudo isto e muito mais pode ser lido no livro de David I. Kertzer, O papa e Mussolini. A história secreta de Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa, editado em Portugal, em 2015, e vencedor do Prémio Pulitzer desse ano, na categoria de Biografia ou Autobiografia. A narrativa histórica pouco convencional vertida neste livro não foi sustentada em simples divagações feitas a partir de livros já editados ou de textos mais ou menos obscuros publicados em sites da internet. Resultou, sim, de uma longa e esmerada investigação do autor efetuada nos Arquivos Secretos do Vaticano, noutros arquivos da Igreja recentemente abertos e também nos arquivos do Fascismo. Os argumentos e conclusões expostos no livro estão devidamente escorados em numerosas notas de rodapé que identificam a documentação descoberta nos arquivos.
Luís Filipe Torgal