No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “O Chega e o avô fascista”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica.
Na última convenção do Chega, houve um militante que se apresentou – sem ironia –, ao seu «púlpito» (para citar a palavra aí usada por outro militante orador letrado), como «homem, pai de família, avô e fascista».
Em bom rigor e abono da verdade, que, aliás, não abundou naquela convenção, o chefe do Chega não será fascista.
Seguindo o pensamento do italiano Emilio Gentile, um dos maiores historiadores vivos especialista neste assunto, o fascismo foi um movimento de massas, interclassista e miliciano. Implantou um estado de guerra permanente contra todos os adversários políticos, para conquistar o monopólio do poder e destruir a democracia parlamentar. Recorreu ao terror, à oratória demagógica e ao compromisso com as elites políticas e económicas. A sua ideologia, de natureza anti-ideológica e pragmática, assentou nos seguintes princípios e valores: antiliberalismo, antidemocratismo, antimarxismo, anti-individualismo, ultranacionalismo, imperialismo, racismo, populismo, anticapitalismo, estatismo, sociedade hierarquizada, machismo, misticismo e laicismo. O seu desígnio foi construir um «homem novo» submisso a um Estado totalitário e a uma comunidade nacional revigorada. Para cumprir tais fins, o fascismo instituiu um aparelho policial preventivo, controlador e repressivo; um partido único enquadrado por uma milícia pretoriana que defendeu o novo regime recorrendo à violência; um sistema educativo doutrinador, um ritual estético e aparelhos de censura e propaganda vocacionados para mobilizarem permanentemente as massas no sentido de estas aclamarem, preservarem e perpetuarem o regime; uma organização corporativa da economia que suprimiu as liberdades sindicais e enquadrou o proletariado e as classes médias; um chefe carismático, messiânico, investido de sacralidade, que dirigia o partido, o regime e o Estado.
Evidentemente, alguns valores e condutas do Chega estão contidos nesta descrição breve de fascismo. Por este motivo, o partido conta com o apoio, mais ou menos críptico, de pessoas e movimentos fascistas atuais ou de saudosistas de Salazar como o militante atrás mencionado. Porém, alguns politólogos, como Riccardo Marchi, preferem classificar o Chega como «partido populista da nova direita radical». Argumentam que o partido não é de extrema-direita, porque pretende mudar o sistema respeitando a Constituição e sem recorrer à violência. E que é populista, porque fala em nome da «arraia-miúda» e deseja apear do poder político, económico e cultural uma alegada elite corrupta que usurpou os partidos políticos que têm governado a III República e traído o povo.
Este argumentário pode ser empático, mas é simplista, pseudocientífico e enganador. Ventura criou o Chega com a ambição obsessiva de conquistar o poder num curto espaço de tempo. O que não é necessariamente condenável, pois será esta a aspiração suprema de muitos políticos e partidos políticos. Porém, para cumprir o seu desígnio, escolheu um conjunto de causas conspícuas e disruptivas capazes de seduzir os media e despertar as massas: prisão perpétua para certos homicidas; castração química para os pedófilos; delação enfática da delinquência cigana e afrodescendente; «etnodiferencialismo» e imigração seletiva; denúncia da vida «parasitária» dos «subsidiodependentes»; e distinção entre portugueses de primeira («portugueses de bem») e portugueses de segunda. Depois, com o apoio dos seus ideólogos, adicionou-lhe outras causas: o combate ao «marxismo cultural» e à «ideologia de género», que, alegadamente, destroem os alicerces em que assenta a sociedade ocidental; o abate da III República, através de reformas radicais, de teor político, económico e social, introduzidas na Constituição, ou mesmo da elaboração de uma nova Constituição que permita instituir um sistema presidencialista puro; rejeição das políticas europeias de combate às alterações climáticas; redução drástica de impostos; uma legislação laboral mais flexível nos domínios da empregabilidade, despedimentos, salários e horários de trabalho; liberalização do mercado de habitação; e privatização da educação e da saúde com a transferência de escolas e de hospitais para entidades privadas.
Para excitar ainda mais a atenção das turbas, Ventura e os seus sósias defendem as suas causas, nas diversas tribunas nacionais – nomeadamente na Assembleia da República —, prescindindo de argumentos racionais e optando por recorrer à mentira e vozearia, ao insulto e à pateada.
Na última convenção do seu partido, Ventura não resistiu em fundir a sua proverbial fanfarronice com uma postura mais comedida. Apresentou-se como o próximo primeiro-ministro de Portugal, decidiu encarnar o papel de estadista e deixou na sombra algumas das suas bandeiras mais polémicas de matriz racista, xenófoba, justicialista e ultraliberal – o que não significa que não continue a defendê-las.
Contudo, a sua desmedida obsessão pelo poder levou-o a prometer tudo a todos: baixar impostos (IUC, IMI e o IVA da restauração e dos produtos portugueses), equiparar as pensões mais baixas dos reformados ao salário mínimo, aumentar os salários dos médicos e técnicos de saúde, rever as carreiras e os salários das forças de segurança e repor o tempo de carreira dos professores.
Entretanto, economistas, juristas fiscalistas e jornalistas já desconstruíram estas propostas do Chega, demonstrando que são trapaceiras e inviáveis.
Isso não preocupa Ventura, pois todos conhecem a sua elasticidade ideológica e a desfaçatez para negar hoje o que ontem defendeu. As convicções não o movem, mas sim a avidez pelo poder. Agora, crê que os ventos sopram a seu favor, alega que o sistema onde, afinal, ele sempre esteve integrado (pois era militante ativo do PSD e comentador televisivo de futebol) está podre, sabe que as democracias estão em regressão e acredita que chegou a sua hora de tomar o poder. Olha com admiração para os seus líderes populistas inspiradores acolitados por ardilosos «engenheiros do caos»: Trump, Bolsonaro, Abascal, Meloni, Salvini, Le Pen ou Viktor Órban – o líder do Fidesz, União Cívica Húngara, que ganhou eleições e, em seguida, num país da União Europeia, alterou a Constituição, mudou a lei eleitoral, purgou as universidades, controlou os media, interferiu no Supremo Tribunal e suprimiu a democracia na Hungria.
Quanto mais baixo descer o atual regime, mais o Chega tem razões para propagar o seu carnaval. Terá o Chega ideias claras, justas, coerentes e exequíveis, bem como recursos humanos probos e ilustrados para aplicá-las e revolucionar o sistema? Ou Ventura e os seus sequazes (a maioria deles sem nenhum currículo cívico, académico e/ou profissional), caso os resultados eleitorais do partido sejam exponenciados, irão antes contribuir para agravar os problemas do regime democrático e acelerar a sua degenerescência? E se Ventura não for o grande timoneiro que os eleitores mais incautos ou mais irados ou mais incultos auguram, mas for somente a lebre que propiciará a chegada de um novo ditador?
Luís Filipe Torgal