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Opinião: “Putinocracia”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “Putinocracia.  Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica.

Putinocracia

“Na Cabeça de Putin, de Michel Eltchaninoff (ME), é um dos livros mais interessantes editado este ano, em Portugal, sobre Putin e o complexo sistema político autocrático e imperial que este político tem vindo a estabelecer na Rússia, desde 1999. Eltchaninoff é um filósofo francês especialista em história do pensamento russo e este seu livro recebeu o prémio anual de melhor ensaio publicado em França atribuído pela Revue des Deux Mondes. A obra faz uma original, oportuna, inquietante e controversa dissecação e apreciação crítica dos intelectuais e das ideias que, segundo ME, ajudaram a moldar a mente de Putin e a edificar o seu regime.

O ex-agente do KGB é oriundo de uma família sem dissidências do regime comunista (o seu avô foi cozinheiro de Estaline). Durante a era soviética, também ele foi um apparatchik fiel à URSS, que lhe inculcou os princípios do patriotismo e do militarismo. ME considera que Putin não é um intelectual, um doutrinador, mas um pragmático, que assimilou uma amálgama de referências filosóficas e ideológicas provenientes de diversos pensadores. É também um velho praticante e campeão de judo que interiorizou a filosofia desta arte marcial, assente no respeito pelo mestre, na astúcia e não na força bruta, e numa vontade indómita de dominar os adversários.

No início da sua carreira política, apresentou-se, cinicamente, como um liberal, um democrata defensor do estado de Direito, da economia de mercado, dos padrões Ocidentais e de uma aproximação à Europa Ocidental. Tornou-se primeiro-ministro em 1999, e desde 2000 até hoje já cumpriu quatro mandatos presidenciais intercalados por um segundo mandato como primeiro-ministro. Depois de Estaline, é hoje o político russo que mais tempo permaneceu no poder e isso determinou uma deriva para um regime assente em conceções bem diferentes das que inicialmente apregoou.  

Através de Nikita Mikhalkov – consagrado cineasta russo, nacionalista, saudosista da Rússia czarista e realizador do filme memorável «O sol enganador» (1994), cuja narrativa é uma denúncia, metafórica e melancólica, do estalinismo —, Putin recebeu e converteu-se às doutrinas do obscuro filósofo hegeliano Ivan Ilyn (1883-1954). Ilyn foi um vigoroso anticomunista forçado a exilar-se depois da revolução de Outubro de 1917. Simpatizante inicial do fascismo e do nazismo, afastou-se destas correntes por as considerar demasiado pagãs e totalitárias, acabando por se identificar com o substrato cristão do franquismo espanhol e do salazarismo, regimes que apelidou de «ditaduras democráticas». Teorizou sobre uma «ditadura democrática nacional» dirigida por um «Guia» disposto a recorrer à violência para salvar a Rússia imperial da balcanização, humilhação e do caos (impostos pelo comunismo ou pelas democracias ocidentais).

Outro influenciador de Putin é o sacerdote cristão ortodoxo e seu confessor, Tikhon Shevkunov, que o instigou a edificar uma Rússia conservadora, antissecularizadora, antimoderna, no plano dos costumes, assente na defesa dos valores da família tradicional, na condenação da homossexualidade, do aborto e da internet, enquanto plataforma difusora de uma cultura frívola, global, antipatriótica, violenta, pornográfica, pervertidamente Ocidental. Hoje, a Igreja Ortodoxa russa, dependente do patriarcado de Moscovo, é legitimista, ultraconservadora e desempenha um papel fundamental na validação do putinismo.

Colheu também influências de outros pensadores. Entre eles, Nikolai Daniliévski (1822-1885), filósofo que defendeu a originalidade da geografia e do povo russo – eleito por Deus e que vive em «osmose com o seu líder» – e prognosticou a construção de um império pan-eslavo, eurasiático e universal, controlado pela Rússia e apto a afrontar o Ocidente (o livro deste autor Rússia e Europa, 1871, juntamente com a obra As Nossas Missões, de Ivan Ilyn, são, hoje, uma bíblia entre as elites russas e contêm uma parte do projeto de Putin). Aleksandr Dugin (ideólogo polémico com quem Putin não tem relações cordiais) que cruzou e conjugou doutrinas diversas (eurasianismo, nacional-bolchevismo, tradicionalismo antimoderno, paganismo fascista, ocultismo, messianismo) para profetizar uma utopia conservadora, em que a Rússia combaterá e derrotará a democracia global e o reino do Anticristo e construirá uma nova identidade política, social e cultural cristã. Lev Gumilev (1912-1992), mais um pensador eurasianista e antiocidental conhecido e citado por Putin, que imaginou uma união de povos superiores eurasiáticos sob o comando da Rússia contra o Ocidente e o resto do mundo. Fiódor Dostoiévski, genial romancista que, de acordo com ME, tornou-se, na sua fase literária mais vetusta, conservador, adversário feroz da intelectualidade liberal, socialista, ocidentalista e cientificista, e propugnador de uma corrente reacionária, religiosa pró-ortodoxa e crente no destino russo de salvar o mundo. Viatcheslav Nikonov, historiador e neto do ministro dos negócios estrangeiros estalinista, Molotov (signatário do pacto germano-soviético de 1939), que parece estar em perfeita sintonia com a mundividência de Putin e pretende que cada falante russo que vive no exterior seja portador de uma visão putinista do país. Completam ainda o quadro de intelectuais evocados por Putin para fabricar as suas doutrinas de renascimento autoritário, eslavófilo ou eurasiático, pseudocientificista e conservador da Rússia os filósofos Konstantin Leontiev (1831-1891), Vladimir Soloviev (1853-1900), Nikolai Berdiaev (1874-1848), bem como o escritor Konstantin Aksakov (1917-1960) e até Alexksandr Soljenítsin (1918-2008), autor das obras Arquipélago do Gulag e Como Reordenar a Nossa Rússia (1991), onde sonhou reconstituir a russofonia.   

A conquista e a conservação maquiavélica do poder por Putin (e pelo seu clã de siloviki e oligarcas) impeliu-o para brutais políticas militaristas e imperialistas. Putin e os serviços secretos russos (FSB) terão sido responsáveis pelos atentados bombistas de 1999, primeiro no Daguestão, depois nos edifícios residenciais de Moscovo, Buinaksk e Volgdonsk, que ceifaram a vida a cerca de 300 cidadãos russos. O propósito destes atos de terror foi atribuir a responsabilidade a nacionalistas chechenos, justificar a segunda intervenção militar russa na Chechénia (ocorrida entre 1999-2000 e que viria a causar entre 100 e 200 mil vítimas militares e civis) e elevar Putin a salvador nacional de modo a permitir-lhe obter uma vitória que até então parecia impossível nas eleições presidenciais (sobre este assunto, leiam David Satter, Quanto Menos Soubermos, Melhor Dormimos, 2022). Em 2008, desencadeou a guerra com a Geórgia, para defender as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia. Em 2014, anexou a Crimeia, violando o direito internacional e quebrando um consenso entre Estados que garantiu a estabilidade europeia desde o fim do nazismo. Desde 2014, instigou à insurgência e apoiou militarmente as populações russófonas do Donbass, no leste da Ucrânia. Em 2015, interveio na Síria, em defesa do ditador e seu aliado histórico Bashar al-Assad, para consolidar os interesses estratégicos da Rússia na região do Médio Oriente. Em 2022, decretou a invasão total da Ucrânia, cuja viragem para o Ocidente impede Putin de concretizar o sonho imperial russo. Entretanto, distribui passaportes russos pelas populações russófonas que vivem nas antigas repúblicas soviéticas, com o propósito de multiplicar o número de cidadãos russos nesses países. Ameaça ligar a Rússia à região da Transnístria, na Moldávia. Desestabilizou o Ocidente, apoiando financeiramente e por outras vias os partidos e movimentos populistas xenófobos, protecionistas e antiatlantistas, que se batem pela implosão da União Europeia e desse modo semeiam o caos na Europa. Interferiu no Brexit (2016) e na vitória de Trump, nos EUA (2016). Apoderou-se dos media russos e patrocina uma rede internacional de informação, com o desiderato de propagar, na Rússia e no mundo, uma comunicação uniformizada e manipulada. E amaldiçoa uma «quinta coluna» que – na sua mundividência totalitária – é composta por nacionais-traidores que ousam manifestar-se contra as suas guerras canónicas: «O povo russo saberá sempre distinguir os verdadeiros patriotas do lixo e dos traidores, cuspi-los-á muito simplesmente como insetos absorvidos sem querer» (Putin dixit, março de 2022).

Entre 2018 e 2021, Putin adotou uma nova Constituição que permitirá manter-se no poder até 2036, através de dois mandatos adicionais de seis anos cada, que serão, previsivelmente, conquistados em eleições fraudulentas. Investiu fortemente num programa armamentista que pretende tornar a Rússia invencível. Ordenou o assassinato de jornalistas e adversários políticos. Mais recentemente, planeou o homicídio, por envenenamento, do seu principal opositor político, Alexei Navalny. Não tendo conseguido consumar essa intenção, os tribunais, manietados pelo Kremlin, condenaram Navalny a nove anos de prisão, por peculato e desacatos, acusações que a justiça internacional descreveu como uma farsa.

Putin faz uma interpretação revisionista da História que pretende obliterar ou justificar a aliança com a Alemanha nazi de 1939 e atribuir à Rússia a vitória exclusiva sobre o nazismo na «grande guerra patriótica» de 1941-1945. Afiança, erraticamente, que a Ucrânia contemporânea foi totalmente fundada pela Rússia comunista. Forjou a narrativa de uma Ucrânia neonazi, corrupta e antirussófila, que obrigou o Kremlin a defender-se através de uma «operação militar especial» que visa desmilitarizar e desnazificar o país, bem como evitar o «genocídio» perpetrado pelas «marionetas» de Kyiv contra as populações do Donbass. É este passado mitificado num presente reinventado que Putin propaga no país e no mundo.

Em suma: construiu uma ideologia e prática política autocrática (prefere chamar-lhe «democracia dirigida»), imperialista, belicista, russófila inspirada nos pensadores eurasiáticos, conservadora, antimoderna, cristã ortodoxa, escorada em fundamentos lendários, que aspira a tornar-se um farol para todos os povos de um alegado mundo novo «civilizado» que deseja edificar e liderar. Uma ideologia canónica que está, neste preciso momento, a ser consumada à custa do sangue, morte, sofrimento e da destruição da Ucrânia e dos ucranianos.  

ME termina o seu livro com uma reflexão irónica que não resisto a citar: «Vladimir Putin leu seguramente Os Demónios de Dostoiévski. Aí o niilista e revolucionário profissional Piotr Verkhovenski propõe uma chave do sucesso na política: «O essencial é a lenda». Para obter o poder e conseguir mantê-lo, é preciso substituir os matizes da realidade pela extravagância da narrativa sagrada, e depois aplicar esse mito ao que existe, à custa da violência. Mas recordemos como termina o romance: após o assassinato de um inocente, o bando de revolucionários dispersa-se com medo e vergonha. O herói do romance suicida-se. O real vinga-se.»

Através da repressão e da propaganda, Putin conseguiu inocular na maioria do povo russo uma aura de herói messiânico sinistro e benevolente. Por isso, não será deposto, nem através de eleições livres e justas (que são uma quimera, na Rússia atual), nem tão-pouco por meio de uma insurgência popular. Para já, a realidade contradita o supracitado romance de Dostoiévski que condena os que usam a violência em nome dos seus princípios.”

Luís Filipe Torgal

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