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Opinião: “Putin e a realpolitik”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “Putin e a realpolitik”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

Putin e a realpolitik”

“O discreto ex-oficial do KGB e sucessor de Boris Ieltsin, Vladimir Putin, ascendeu ao poder, na Rússia, em 1999, tendo, desde então, desempenhado, alternadamente, os cargos de primeiro-ministro e de presidente. Ao longo de mais de 20 anos, entre alguns sucessos políticos e económicos que não devem ser ignorados, acumulou também um sinistro cadastro ancorado no seu sonho de reedificar o império soviético.

 A Rússia de Putin esmagou o movimento separatista da Chechénia e restaurou o controlo russo sobre esta república. Ordenou a intervenção militar na Geórgia e a ocupação das províncias separatista da Ossétia do Sul e da Abcásia. Invadiu a Crimeia e apoiou os separatistas russos das regiões de Donetsk e Lugansk (no Donbass). Financiou líderes populistas mundiais (Trump, Salvini, Marine Le Pen, Boris Johnson…). Intrometeu-se nas eleições americanas que deram a vitória a Trump e, alegadamente, no referendo britânico que originou o Brexit. Desferiu ataques cibernéticos a empresas e instituições estatais dos países ocidentais, para desestabilizar as suas democracias e economias. Apoiou, militarmente, o ditador Sírio, Bashar Al-Assad. Assassinou, com venenos radioativos, espancamentos e tiros ex-espiões duplos, líderes oposicionistas e jornalistas russos (Alexander Litvinenko, Nicolai Glushkov, Anna Politkovskaya, Anastasia Baburova, Boris Nemtsov, Nicolai Andrushchenko…). Tentou envenenar o oposicionista Alexei Navalny, acabando depois por o encarcerar. A Rússia de Putin transitou do (sabemos agora, ardiloso) reformismo democrático para um regime autocrático (com censura e repressão, chantagem, coerção, propaganda, construção de um universo orwelliano de «pós-verdade», que converte a mais despudorada mentira em verdade, alegadas fraudes eleitorais, corrupção, alteração da Constituição que permite a Putin perpetuar-se no poder, concentração de mais poderes no presidente, prisões e assassinatos recorrentes de jornalistas e de políticos oposicionistas). Protegeu Lucaschenko, o tirano Bielorusso entretanto convertido em títere de Putin, e outros tiranos das ex-repúblicas socialistas soviéticas. Desencadeou uma invasão total da Ucrânia, concretizada com bombardeamentos de alvos civis, que já provocaram centenas de mortos e feridos (entre crianças, mulheres e idosos) e cerca de um milhão de refugiados. Ameaçou o mundo com um ataque nuclear.

A História é sempre complexa e não pode ser interpretada de modo maniqueísta. É verdade que, durante os últimos anos, o mundo ocidental capitalista tem legitimado a sobrevivência de Putin e da sua nomenclatura de políticos e oligarcas. E não será menos verdade que existem na Ucrânia setores populistas ultranacionalistas que apoiam o governo de Zelensky. Mas, caramba, podem estes dois argumentos constituir motivos suficientes para não condenarmos de modo categórico a agressão desvairada e cruel de Putin a um país soberano governado por políticos eleitos democraticamente pelo povo, com base num programa de ocidentalização da Ucrânia? Pode alguém minimamente informado aceitar o néscio argumento vociferado por Putin de que a Rússia invadiu a Ucrânia para se defender, restaurar a paz e libertá-la das influências nefastas de um «gangue de drogados e neonazis»? “

Luís Filipe Torgal

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