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Opinião: “Notas soltas sobre a guerra da Ucrânia”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “Notas soltas sobre a guerra da Ucrânia.  Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

Notas soltas sobre a guerra da Ucrânia

“A guerra da Ucrânia polarizou as opiniões. Algumas vozes (cada vez menos enfáticas) optaram por legitimar a perspetiva de Putin e atribuir a responsabilidade do conflito aos nazis ucranianos, à NATO, aos EUA e à União Europeia.

Porém, nesta guerra, haverá factos que não devem ser ignorados e que suscitam diversas reflexões.

A «Euromaidan», ou «Primavera Ucraniana», ocorrida entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014 —, e brutalmente reprimida pelo governo pró-russo de Viktor Yanukovych —, envolveu milhares de ucranianos oriundos de amplos e diversificados setores socioprofissionais, religiosos, políticos e apolíticos, que exigiram um novo rumo para o seu país. Um rumo que pretendeu desagrilhoar a Ucrânia da União Euroasiática, uma zona de comércio livre tutelada pela Rússia imperial e autocrática, e aproximá-la do Ocidente e da União Europeia. É verdade que esta «revolução», com epicentro na praça Maidan, em Kyiv, foi aproveitada por grupúsculos ultranacionalistas e fascistas e originou algumas decisões antidemocráticas decretadas pelo magnata e presidente Poroshenko (eleito em 2014), no contexto do recrudescimento dos levantes pró-russos de Donetsk e Luhansk. Mas reduzir a «Euromaidan» a isso é uma mistificação da História propagandeado ad nauseam que só beneficia Putin.

Em 2014, Putin decidiu invadir a Crimeia, entre outras razões, para evitar a ameaça de uma futura interdição do acesso da Rússia ao Mar Negro, considerado por este país «espaço vital». Em seguida, incitou a insurgência dos separatistas russófonos da região do Donbass. Desde então, a Rússia — contra as leis mais elementares do direito internacional — apoderou-se da Crimeia, após um referendo fraudulento, e promoveu, de modo ardiloso, uma guerra no Donbass, com o propósito de anexar também este território. Por conseguinte, a guerra da Ucrânia não começou na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022, mas remonta a 2014. E foi a intervenção armada da Rússia nestes territórios que levou as governanças da Ucrânia a requerer a proteção da NATO. Proteção que teria, portanto, um propósito defensivo e não ofensivo.

Aqueles que desculpabilizam o ataque da Rússia à Ucrânia evocando o argumento de Putin de que este último país se tornou um viveiro de neonazis são os mesmos que não se manifestam sobre o governo autocrático da Rússia, o qual, afinal ostenta muitas das características dos sistemas fascistas totalitários de outros tempos: sinistra concentração de poderes num déspota vitalício e na sua nomenclatura de «Oprichniki» (agentes do FSB, Serviço de Segurança Federal, sucessora do KGB) e oligarcas, crença num chefe messiânico e semifeudal, censura prévia e repressiva, propaganda e construção de um mundo orwelliano de pós-verdade, repressão, terror, forças militares e paramilitares leais e submissas, práticas belicistas, intrusão do poder executivo no poder judicial, eleições fraudulentas, prisões e assassinatos de jornalistas e oposicionistas. Ditadura que, sim, beneficia do apoio, ativo ou passivo, de significativos setores populares russos, por convicção, saudosismo, ressentimento, manipulação, oportunismo ou medo. Nada de novo na frente ocidental: foi assim na Itália fascista, na Alemanha nazi, na Espanha de Franco. Foi assim no Portugal de Salazar e Caetano.

Como escreveu Francisco Louçã, no suplemento de Economia do jornal Expresso (18-03-2021), a invasão da Ucrânia não resulta de um delírio de Putin, mas, sim, de um projeto racional, sopesado, de restabelecer as fronteiras do império czarista e de corrigir um alegado erro da URSS na independência da Ucrânia. Em última análise, o seu propósito será dominar a eurásia (que, segundo declarações recentes emitidas pelo antigo presidente da Rússia e lacaio de Putin, Dmitry Medvedev, deve estender-se de Vladivostok a Lisboa!). E isso tem levado Putin, há muito tempo, a procurar criar o caos nos EUA e na União Europeia, entre outros expedientes especialmente ominosos, através do apoio a diversas organizações populistas mundiais de extrema-direita (algumas de tendências neofascistas ou neonazis!) comandadas por personalidades escabrosas como Trump – que, logo após a invasão da Ucrânia, disse que Putin era um «génio» «muito astuto» –, Salvini, Marine Le Pen, Steve Bannon, Bolsonaro ou mesmo Viktor Orbán, que acabou de obter a maioria absoluta na Hungria, onde reina uma «democracia» cada vez mais nacionalista, iliberal e musculada. 

Nenhuma guerra tem justificação. Porém, todas as guerras derivam de uma conjugação de causas complexas que só costumam ser esclarecidas, anos mais tarde. Esse trabalho de desocultação, compreensão e publicação de uma narrativa cabe sobretudo aos historiadores e decorre de uma afanosa recolha, investigação, seleção e interpretação objetiva de fontes. A leitura a quente dos acontecimentos é sempre demasiado superficial e subjetiva. Por exemplo, muitos anos depois, não é difícil encontrar explicações historiográficas – estruturais e conjunturais – que justifiquem a emergência dos fascismos (Versalhes e outros tratados de paz mal engendrados e desonrosos impostos, no final da Primeira Guerra Mundial, pelos principais vencedores aos vencidos e aos vencedores de segunda linha, a humilhação, a miséria, a proletarização e o ressentimento da Alemanha e da Itália do pós-guerra, o forte confronto ideológico entre regimes demoliberais sem preocupações sociais e os movimentos comunistas, etc.; no caso português, a intrusão dos militares na política, um sistema parlamentarista muito imperfeito e causador de instabilidade política endémica, a deriva autoritária, a insistência numa Lei de Separação do Estado das Igrejas mais radical e a opção pela participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial decididos sobretudo pelo Partido Democrático, de Afonso Costa, etc.). Porém, isso não nos impede, como cidadãos (mas não como historiadores), de condenar, de modo inequívoco, as atrocidades dos fascismos.

Determinadas vozes atuais rotulam de americanistas, europeístas compulsivos, belicistas, neoliberais sectários, ingénuos ou obtusos todos os que condenam, categoricamente, a Rússia de Putin, por ter invadido de forma brutal o estado soberano da Ucrânia, por bombardear, indiscriminadamente, alvos civis, matar crianças, mulheres e homens, destruir cidades e monumentos, dividir famílias, causar milhões de refugiados, e agora por cometer massacres que parecem configurar «crimes de guerra».

Essas mesmas vozes condenam a venda de armas à Ucrânia pelos países da União Europeia e pelos EUA, e exigem uma paz imediata e indefinida. Mas a paz não pode ser assinada pela Ucrânia em condições de total submissão. A paz não pode decorrer de um diktat brutal e humilhante imposto pela Rússia imperialista à Ucrânia; diktat que, aliás, a extermina como Estado soberano e gera problemas trágicos no presente e no futuro. O maniqueísmo de alguns chega ao ponto de replicar teorias ao nível das esdrúxulas conspirações de QAnon, quando sugerem que os ataques a Chernobil, escolas, hospitais, teatros, centros de saúde e bairros residenciais, que já mataram e feriram milhares de ucranianos, ou insinuam que os massacres indiscriminados agora descobertos, ocorridos na cidade de Bucha, são obra fratricida do governo ucraniano ou das milícias nazis!

É demagógico inferir que Zelensky usurpou o poder na Ucrânia ou então ganhou eleições, em 2019, a Poroshenko, com percentagens idênticas às vitórias eleitorais de Putin na Rússia. Zelensky ganhou eleições livres como candidato da oposição. Putin venceu eleições encenadas, na qualidade de eterno ditador do regime autocrático e confessional que ele próprio fundou e controla. Por exemplo, no Portugal do Estado Novo, nas eleições presidenciais dolosas de 1958 (como eram todas as organizadas naquele tempo), Américo Tomás, o candidato de Salazar, obteve 76% dos votos, contra 23% de Humberto Delgado.

O discurso propagandístico de Putin sobre a «desnazificação» da Ucrânia (que terá sido forjado sobretudo para consumo interno) tem convencido muitos detratores do governo ucraniano. Estes últimos parecem viver atormentados com as putativas hordas e hordas de nazis que se reproduzem na Ucrânia!

Todo o mundo sabe (porque muitos jornalistas ocidentais independentes já editaram várias peças sobre o assunto) que existem partidos neofascistas e milícias nazis na Ucrânia que vituperam a influência opressiva da Rússia neste país e combatem, sobretudo no leste, as milícias separatistas russófonas apoiadas pelo exército russo. Refiro-me ao partido «Svobada» (União Pan-ucraniana «Liberdade»), ao Pravy Sektor (Setor Direita) e ao célebre Batalhão Azov, que foi incorporado no exército nacional. Isso é preocupante? Evidentemente. Mas qual foi a representatividade dos partidos citados nas eleições de 2019, na Ucrânia? Cerca de 2%!

Todavia, importa não ignorar o que se passa do lado russo. É conhecida a veneração de Putin pelo ideólogo russo Ivan Ilyin (1883-1954), admirador de Hitler e de Mussolini, e profeta de uma Rússia pós-soviética, imperialista, anticomunista, fascista de matriz cristã ortodoxa, mística, pan-eslava. E quem não reparou na explosiva conjugação de milícias e fações que apoiam o regime de Putin? Milícias e fações que auxiliam Putin a fornecer-lhe o suporte ideológico e o apoio militar que ele necessita para coagir amplos setores ressentidos do povo russo, resgatar o império czarista e negar e dizimar a Ucrânia: Grupo Wagner (poderoso exército de mercenários fundado por gente da intimidade de Putin e que tem servido, clandestinamente, as forças armadas russas e o seu Governo, em várias partes do mundo; uma espécie de SS russa ou guarda pretoriana da «Putinlândia», que é acusada de simpatias nazis e de múltiplos crimes de guerra); Exército Ortodoxo Russo, grupo paramilitar ultranacionalista que emergiu no leste separatista da Ucrânia e beneficia do apoio da Igreja Ortodoxa russa; Batalhão Vostok e outras Unidades de Voluntários da União Nacional da Rússia, que integram diversas organizações neonazis; destacamento Jovan Sevic constituído por chetniks sérvios que foram colaboracionistas dos nazis durante a Segunda Guerra Mundial; esquadrões da morte liderados por Ramzan Kadirov, vassalo de Putin, tirano fantoche de uma Chechénia “satelizada” pela Rússia e facínora acusado de abundantes crimes de sangue perpetrados dentro e fora do seu território; Kirill, o patriarca ultraconservador da Igreja Ortodoxa russa, aliado leal e interesseiro de Putin (que identificou como «um milagre de Deus») e divino legitimador do seu poder e da invasão da Ucrânia; vários intelectuais ligados a centros de investigação e a movimentos políticos russos absolutamente comprometidos com ideologias ultraconservadoras, integristas, fundamentalistas, ultranacionalistas e pan-eslavas.

Todas as guerras são desprezíveis e aterrorizadoras – as guerras do Afeganistão, Iraque, Síria, Iémen, Mianmar, Etiópia, etc. Mas é natural e humano que as guerras causadas por uma potência militar com armas de destruição maciça, que acontecem mais próximas de nós e minam o futuro de uma Europa tendencialmente unida, livre e democrática, nos perturbem mais, da mesma forma que as tragédias que acontecem nas nossas casas, com as nossas famílias ou amigos, nos provocam maior horror e desassossego”.

Luís Filipe Torgal

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