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Opinião: «Meia dúzia de safanões a tempo contra essas criaturas sinistras» História e memória da PIDE

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo – «Meia dúzia de safanões a tempo contra essas criaturas sinistras» História e memória da PIDE.  Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica.

«Meia dúzia de safanões a tempo contra essas criaturas sinistras»

História e memória da PIDE

«O fascismo nunca existiu». No seu estilo paradoxal e desconcertante, o ensaísta Eduardo Lourenço utilizou esta expressão sarcástica para demonstrar que o Estado Novo foi, afinal, um regime fascista envergonhado, camuflado, paternalista, encoberto por uma roupagem legalista.  

Um dos instrumentos repressivos do regime foi a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE, 1945). Esta descendeu, sucessivamente, das seguintes organizações: Polícias de Informações de Lisboa e do Porto (PI, 1926, portanto criada pela Ditadura Militar, 1926-1933), Polícia de Informações do Ministério do Interior (PIMI, 1928), Polícia Internacional Portuguesa (PIP, 1931), Polícia de Defesa Política e Social (PDPS, 1932) e Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, 1933). Já na fase do Estado Novo Marcelista, entre 1969 e o golpe militar de 25 de Abril de 1974, através de uma nova remodelação cosmética — que replicava a encenação de 1945, a qual atribuiu à polícia política um nome mais inócuo, embora lhe tenha conferido um maior profissionalismo —, foi rebatizada de Direção-Geral de Segurança (DGS). 

Importa aqui não escamotear que a Primeira República (1910-1926) também teve uma polícia com funções de vigilância e prevenção de «crimes políticos e sociais», a qual foi reorganizada durante o consulado Sidonista (1917-18). Porém, esta polícia nunca beneficiou dos poderes alargados e discricionários da PIDE, porquanto as suas ações restritas estavam sujeitas ao escrutínio do Parlamento, dos diversos organismos do Governo e da imprensa.

A PIDE foi, gradualmente, incumbida de competências mais vastas. Tornou-se um dos pilares do regime e uma das pedras basilares da sua longevidade. Preveniu, dissuadiu e reprimiu «crimes políticos e sociais» atribuídos a comunistas (que foram as suas principais vítimas), anarquistas, sindicalistas, «reviralhistas», republicanos democráticos de diversas tendências, monárquicos, católicos «progressistas» e grupúsculos de esquerda radical. Vigiou, perseguiu, repreendeu e encarcerou operários, estudantes e «intelectuais» mais politizados, bem como outros setores socioprofissionais. Fiscalizou estabelecimentos prisionais para crimes políticos (Aljube, Tarrafal, Caxias e Peniche). Controlou, nas fronteiras, a legalidade dos passaportes de cidadãos portugueses e estrangeiros e as atividades dos engajadores de emigrantes clandestinos. Espiou «associações secretas» interditas pelo regime e escrutinou e saneou os funcionários públicos civis e militares acusados de expressar convicções «subversivas», «antinacionais» e «antissituacionistas». Colaborou com os serviços de censura. Combateu os movimentos sindicais e fiscalizou a implantação da nova ordem corporativista. Reprimiu a contestação anticolonial, na “metrópole” e no “ultramar” português, e durante a guerra colonial forneceu aos militares portugueses informação privilegiada acerca dos movimentos independentistas.  

Para cumprir com zelo todas as suas incumbências, socorreu-se do contributo de outras polícias, das forças armadas, da Legião Portuguesa e de todas as estruturas do regime e do aparelho distrital e local, assim como do auxílio coercivo ou espontâneo da população. E recorreu aos expedientes mais discricionários que lhe permitiram criar uma ambiência de medo e dissuadir eventuais dissidentes: interceção de correspondência; escutas telefónicas; prisões arbitrárias, sem mandato de captura judicial e muitas vezes escoradas nas denúncias mais ou menos maliciosas de «informadores» (vulgarmente chamados de «bufos»); confisco de livros e de periódicos censurados; desterro forçado das vítimas; recrutamento de uma vasta rede de «informadores»; aferição de informações também oriundas de muitos delatores e cúmplices voluntários; intimidação, coerção e manipulação dos suspeitos de partilharem pensamentos e atos anti-estadonovistas; extração de depoimentos através de interrogatórios violentos, com recurso a torturas («estátua» e privação do sono) e espancamentos, métodos estes que foram sempre negados pelo regime; instrução de processos-crime quase sempre sancionados pelos tribunais plenários, em que as testemunhas de acusação eram elementos da própria PIDE e os arguidos e os seus advogados estavam impossibilitados de fazerem a sua defesa; homicídios, como foram os casos mais mediáticos do general Humberto Delgado, candidato da oposição ao Estado Novo de Salazar nas eleições presidenciais de 1958, e da sua secretária Arajaryr Campos.  

Nas décadas de 60 e 70 do século XX, a PIDE beneficiou de uma rede imensa e fundamental de «informadores» (não menos de vinte mil), recrutados ou voluntários, provenientes dos mais diversificados setores sociais e profissionais, mas não terá excedido os três mil funcionários administrativos e policiais, geralmente providos de pouca instrução e originários das classes sociais mais baixas, os quais eram dirigidos por diretores que respondiam perante o ministro do Interior e, sobretudo, diante de Salazar, o chefe do Governo. Assim, a PIDE não terá sido um «Estado dentro do Estado», mas um instrumento eficaz ao serviço de um regime político autoritário, oligárquico, burocrático e ultracentralizado no seu ditador. Salazar que numa entrevista concedida em 1933 a António Ferro, a propósito da repressão contra os seus opositores, subscrevia a tese de «meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras», que inspirou a epígrafe deste texto. António Ferro que dirigiu o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e foi o argumentista “oculto” d`A Revolução de Maio (1937), um dos mais emblemáticos filmes de propaganda do Estado Novo, que retrata a conversão de um revolucionário bolchevique ao regime de Salazar testemunhada por agentes de uma polícia política bem organizada, civilizada, compreensiva e humana.     

Se, por um lado, foi propagada, logo após o 25 de Abril (e, até antes disso, por alguns setores mais radicais do próprio Estado Novo), uma representação memorialista, por vezes hiperbólica, de um organismo policial tenebroso, omnipotente e omnisciente, que incutiu o terror nos portugueses, coagindo-os a obedecerem e a submeterem-se à ordem vigente. Por outro lado, é também possível aquilatar que, durante o Estado Novo, uma grossa fatia de portugueses não deixou de se acomodar, de interagir amiúde com a PIDE e até de, oportunisticamente, a instrumentalizar. Prova disso é, por exemplo, o número relevante de cartas de denúncias voluntárias recebidas nesta polícia, motivadas por vingança, inveja, rivalidades ou alegado dever de lealdade com a suposta pureza moral e ideológica do regime, as candidaturas espontâneas de gente desempregada que ambicionava ingressar nos quadros da PIDE, e as petições dirigidas a agentes desta polícia para que resolvesse abusos patronais e conflitos pessoais. Estes documentos, coligidos e analisados por Duncan Simpson, foram encontrados dispersos pelos processos do Arquivo da PIDE/DGS depositados na Torre do Tombo e pelo Arquivo do Ministério do Interior, que tutelava a polícia política (Duncan Simpson, Cartas portuguesas à PIDE, 2022).

A PIDE tem sido objeto de sucessivos trabalhos de investigação historiográfica que se complementam e têm vindo a oferecer uma perspetiva mais objetiva, problematizadora, polifónica e holística sobre a sua ação.

Não obstante, tem também sido motivo de uma acesa polémica académica. De um lado estão Rui Ramos e Duncan Simpson (e outros), que relativizaram a violência política salazarista, sustentaram que a maioria dos portugueses foram mais «cúmplices» do que «vítimas» desta polícia e acusaram alguns historiadores de produzirem uma história ortodoxa da PIDE (e do próprio Estado Novo) inquinada por interesses memorialistas antifascistas e por proselitismo político (podcast O resto é História, de Rui Ramos e João Miguel Tavares, «Duncan Simpson e as cartas portuguesas para a PIDE», e Duncan Simpson, op. cit., 2022). Do outro lado encontram-se Irene Pimentel e Fernando Rosas (e a maioria da comunidade académica), que, afinal, não menosprezaram, na sua obra, o tratamento das formas de ligação entre a PIDE e setores da população, considerando até Rosas serem estas ligações um dos segredos da longevidade do regime (Irene Pimentel, A História da PIDE, 2007, Informadores da PIDE, 2022, e Fernando Rosas, Salazar e o poder, 2012). Pimentel acusou Simpson de «apropriação, deturpação e falsificação» do seu trabalho (Público, 21-02-2021). Rosas considerou que Ramos construiu uma História «desproblematizadora», «superficial», «historicamente insustentável», dirigida ao «grande público», que está «empapada de ideologia». «Uma ideologia que faz passar a visão da Primeira República como um regime ditatorial, “revolucionário” e de “terror”, por contraponto a um Estado Novo ordeiro e desdramatizado, quase banalizando a sua natureza política e social, transfigurado em ditadura catedrática, em regime conservador moderado e aceitável, apesar de um ou outro abuso» (Público, 5-09-2012). Na linha de Rosas e Pimentel, outros acusaram Ramos e Simpson de pretenderem fazer uma História «cor-de-rosa» ou mesmo revisionista ou até negacionista do Estado Novo. Versão da História deste período que, acrescente-se, pode tornar-se especialmente perigosa, numa época em que a memória dos portugueses sobre os 41 anos de ditadura salazarista e marcelista se vai desvanecendo e os movimentos populistas vão, cada vez menos sorrateiramente, ganhando lastro…

O breve texto de divulgação aqui editado foi escrito a partir de trabalhos de investigação assinados por Maria da Conceição Ribeiro, Irene Pimentel, Fernando Rosas, João Madeira, Luís Reis Torgal, Luís Farinha, Renato Nunes, Paulo Marques da Silva e Duncan Simpson.

Uma das mais recentes obras de investigação que versa sobre a PIDE é o livro «Brandos Costumes… O Estado Novo, a PIDE e os intelectuais», que será editado, em finais de setembro, pela Temas e Debates. Foi coordenado por Luís Reis Torgal e tem a participação de Heloisa Paulo, Julião Soares de Sousa, Luís Reis Torgal, Luís Filipe Torgal, Paulo Marques da Silva, Renato Nunes e Vítor Neto. O livro recorreu aos processos individuais da PIDE/DGS existentes na Torre do Tombo, bem como a outras fontes, para analisar como algumas «figuras “exemplares” do panorama cultural português» — Tomás da Fonseca, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguel Torga, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Namora, Jorge de Sena, Natália Correia, Amílcar Cabral e Luís de Stau Monteiro — foram escrutinados pela PIDE.    

Luís Filipe Torgal

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