No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um artigo In Memoriam “Otelo entre os deuses e os demónios”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.
In Memoriam
Otelo entre os deuses e os demónios
“Conheci o coronel Otelo Saraiva de Carvalho em finais de 2012. Nessa época, o grupo de professores de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital decidiu realizar um fórum alusivo à revolução do 25 de abril de 1974, em que fosse possível confrontar as memórias do velho capitão e estratega de abril com a perspetiva de um historiador da época contemporânea especializado na história do Estado Novo.
Os sucessivos contactos que estabeleci com Otelo para preparar o evento transmitiram-me a imagem de um homem informal, especialmente simpático e afetuoso. Como ficou combinado, ele compareceu em Oliveira do Hospital, no dia 19 de abril de 2013, para realizar a sua palestra no auditório do Crédito Agrícola. A seu lado, esteve o historiador (e meu pai) Luís Reis Torgal.
Recordo-me que as comunicações então realizadas pelo militar e o historiador foram especialmente impressivas, tiveram grande audiência entre alunos, professores e outros cidadãos locais e geraram um debate vivo. Nesse mesmo dia, tive o privilégio de almoçar no restaurante pedagógico da escola com o «militar de abril» e também de jantar com ele na minha casa. E isso permitiu-me confirmar a representação que tinha antes construído sobre ele: era um homem empático, que conseguia estabelecer uma relação de proximidade imediata com os seus interlocutores.
Nesse ano letivo, coordenei com os professores Célia Lourenço e Francisco Henriques a edição número 6 da revista Ipsis Verbis, dedicada ao tema «Personalidades», que foi publicada em maio de 2013. Esse número teve uma rubrica intitulada «Reflexões e ficções de Abril», que contou com um texto assinado por Otelo Saraiva de Carvalho chamado, sintomaticamente, «Sobra-nos a utopia!». Entusiasmado por ter conhecido o coronel Otelo, resolvi escrever, nesse mesmo número da revista, uma nota biográfica breve e redutora que intitulei «Otelo entre os deuses e os demónios». Poucos dias depois de lhe enviarmos a revista, Otelo teve a gentileza de me telefonar para agradecer a nossa oferta e também esse texto que lhe dediquei.
É esse texto com inevitáveis correções e atualizações que resolvi aqui republicar em homenagem ao «capitão de abril», Otelo Saraiva de Carvalho, que nos deixou no passado dia 25 de julho.
Em 2024, a revolução de 25 de abril comemora 50 anos — ocasião maior para as escolas recordarem às gerações nascidas depois da implantação da democracia a história desse acontecimento e os seus protagonistas.
Um deles foi o coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021). Para a maior parte dos jovens, Otelo é um desconhecido. Mas, para muitos dos que viveram mais ou menos intensamente esse período ou para os tribalistas de hoje o nome de Otelo e a sua história repleta de luzes e sombras suscitam ainda sentimentos primários de amor e ódio. Dito de outro modo: para algumas destas pessoas que vivenciaram ou conhecem vagamente a história de Portugal decorrida entre 25 de abril de 1974, 25 de novembro de 1975 e a primeira metade dos anos 80 do século XX, época em que se consolidou o processo democrático, mas também onde ocorreram as ações violentas das Forças Populares 25 de Abril (FP25), Otelo permanece uma lenda, pois nunca conseguiram erigir sobre a sua personalidade complexa uma representação histórica. Nunca conseguiram construir sobre a sua ação política uma interpretação objetiva e explicativa.
Dispensemos a lenda para somente submeter ao juízo dos leitores um conjunto de dados factuais que revelam o homem paradoxal que foi Otelo.
Militar que fez sucessivas comissões de combate na guerra colonial de Angola (1961-63) e da Guiné-Bissau (1970-73), onde serviu sob as ordens do general Spínola.
Membro preponderante do Movimento das Forças Armadas (MFA), estratega e coordenador intrépido da revolução de 25 de abril de 1974. Portanto, foi o primeiro operacional do golpe de estado não violento que derrubou a ditadura do Estado Novo que vigorava pelo menos desde 1933.
Depois de fazer a revolução, desejou recolher ao quartel para cumprir ordens exclusivamente militares. Mas seria convocado por outros protagonistas para a vertigem dos acontecimentos políticos que se sucederam nos dias impetuosos do PREC / Processo Revolucionário em Curso e nos anos seguintes.
Em 1975, chefiou o Comando de Operações do Continente (COPCON), que tinha sob o seu poder várias forças especiais do país, visava impor a ordem pública e criar condições necessárias para o cumprimento do programa do MFA. Todavia, nesse posto de comando privilegiado interveio, por vezes de modo arbitrário, em defesa dos interesses de uma democracia popular ou de uma espécie de socialismo militar.
Liderou, pelo menos simbolicamente, uma tendência revolucionária da democracia direta, que rejeitou a democracia ocidental e defendeu a reforma agrária, o voto direto em pessoas e não em partidos, o poder das assembleias populares, das comissões de trabalhadores e de moradores, das cooperativas e dos sindicatos. Em nome dos trabalhadores e na qualidade de alegado candidato genuíno dos ideais do 25 de abril, concorreu às eleições presidenciais de 1975, tendo obtido um honroso — e, para alguns, surpreendente — segundo lugar, com 16,5% dos votos (atrás do vencedor, Ramalho Eanes, mas à frente de Pinheiro de Azevedo e de Octávio Pato, o candidato do Partido Comunista Português).
Durante o processo revolucionário, teria sido convidado, sucessivamente, para chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, vice-primeiro ministro de um governo de Vasco Gonçalves e presidente da República. Rejeitou sempre estes cargos, argumentando que não tinha preparação política e conhecimentos para desempenhar tais funções. Ao contrário de outras personalidades ligadas ao Portugal de abril ou de pós-abril, nunca se preocupou em acautelar o seu lugar na História.
Foi preso depois do golpe de 25 de novembro de 1975, que, supostamente, impediu a tomada do poder pelas forças da esquerda radical (PCP incluído). Este episódio carece ainda hoje de uma investigação histórica rigorosa e desapaixonada. Por exemplo, Ramalho Eanes afirmou que a ação de Otelo evitou, nesse dia, uma guerra civil.
Fundou a Força de Unidade Popular (FUP), em 1980, que reuniu vários grupos de extrema-esquerda para, sob a bandeira do grande estratega militar de abril, concorrer às eleições legislativas e presidenciais (tendo obtido nas eleições presidenciais de 1980 apenas 1,4% dos votos).
Foi acusado de ser o mentor intelectual e executivo (através da FUP e do seu «Projeto Global») das Forças Populares 25 de Abril, organização terrorista que, em nome de um projeto de poder popular e para deter o suposto avanço das forças «fascistas», cometeu atos de grande violência que foram julgados e condenados pelos tribunais. Por esse motivo foi preso. Todavia, rejeitou sempre essa responsabilidade ou pelo menos o envolvimento nos crimes de sangue das FP25.
Deslumbrado pela revolução de Cuba, referiu que se tivesse lido os livros certos teria sido o Che Guevara ou o Fidel Castro da Europa. Contudo, ele é também a prova de que as revoluções devoram quase sempre os seus filhos ou convertem os heróis em vilãos. No Portugal do século XX, isso tinha já acontecido com o comissário naval António Machado Santos, entronizado, em 1911, pela Assembleia Constituinte republicana, «herói» do 5 de outubro de 1910 e «fundador» da Primeira República, mas que, em 1921, devido às suas ações irresponsáveis, acabou assassinado em Lisboa, na trágica «noite sangrenta», às mãos de meliantes republicanos. E, embora de forma bem menos trágica, ocorreu com Otelo, o qual também cometeu ações irrefletidas e por isso foi preso pelo novo regime republicano democrático que ajudou a nascer, para ser depois amnistiado por um indulto presidencial de Mário Soares, mas quase esquecido pela História.
Otelo foi apresentado por amigos e por inimigos como um homem solidário, generoso, volúvel, sedutor, influenciável, honesto, ingénuo, inteligente, louco, teatral, tolerante, irresponsável, voluntarioso, carismático, pouco disciplinado, amigo dos seus amigos, simpático, extrovertido, corajoso, frontal, desligado do mundo material, quixotesco, impulsivo, com o coração junto da boca. E ele próprio afirmava que coexistiam na sua idiossincrasia «contradições imensas».
Num momento em que o regime democrático português atravessa talvez a sua maior crise — crise económica e financeira, mas também crise política, moral e cultural —, importa contextualizar e não obliterar ou mistificar o percurso histórico de um dos seus fundadores”.
Luís Filipe Torgal