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Opinião: “Economia, sociedade e educação, na Primeira República e no Estado Novo”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um artigo sobre “Economia, sociedade e educação, na Primeira República e no Estado Novo”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“Hoje, voltou a estar na moda comparar a Primeira República (1910-1926) e mesmo a Terceira República (nascida da revolução de 25 de abril de 1974) com o Estado Novo (1933-1974), com o propósito de demonstrar que este regime foi mais competente do que aquele(s) em áreas como a economia ou a educação.

Suspeito que as motivações que originam estas comparações são mais políticas do que científicas.  

Sobre a questão económica, importa dizer o seguinte. Fazer uma análise estritamente económica da evolução de Portugal durante o Estado Novo, sem atender a questões políticas, sociais e culturais, pode dar jeito àqueles que desejam arregimentar as direitas radicais e tribalizar o país. Mas é apenas uma interpretação redutora da realidade económica, que não capta o pulsar das sociedades humanas. A narrativa de uma «era de ouro» do crescimento económico português registado entre 1950/1960 e 1973, convenientemente proclamada pelo historiador económico Nuno Palma na convenção do MEL (Movimento Europa e Liberdade), contrasta com os retratos eloquentes de um país atrofiado por problemas estruturais, onde fervilhavam a emigração em massa rumo à Europa Ocidental ocorrida em condições aviltantes, profundas desigualdades sociais e assimetrias territoriais, uma confrangedora estagnação do mundo rural, a miséria social e a ausência de modernidade (para não falar nas liberdades amordaçadas por aparelhos de censura e repressão cínicos e eficazes). Para uma melhor clarificação deste assunto, sugiro a leitura do artigo do historiador Álvaro Garrido, intitulado «A História da economia e os seus limites», editado, online, no passado dia 1 de julho, no jornal Público, de onde colhi algumas das ideias atrás expostas.

Ainda a propósito do mesmo tema, vale a pena recordar a famosa «Carta a Salazar», assinada, em julho 1958, pelo insuspeito bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e que determinou um exílio de 10 anos do prelado exigido pelo (agora representado por alguns como «benevolente») ditador português: «Enquanto trata […] do problema económico, salvas pequenas diferenças, não pude senão admirar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições. Quando, porém, cheguei ao problema social, tudo começou a ser difícil. […] Não poderei dizer quando me aflige o já exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do farrapo; nem sequer o nosso triste apanágio das mais altas médias de subalimentados, de crianças enxovalhadas e exangues e de rostos pálidos (da fome e do vício?)». Ou ainda lembrar este trecho impressivo resgatado do estudo do também insuspeito economista e sociólogo católico corporativista, Adérito Sedas Nunes, sobre o estado da sociedade portuguesa, apresentado nos anos 60 do século XX: «Mas quem somos nós? Entre os 16 Países da Europa, somos o penúltimo, na capitação de consumo de energia; depois de nós, só a Turquia. Somos o antepenúltimo na capitação do consumo do aço; depois de nós, só a Grécia e a Turquia. Somos o penúltimo, nas taxas de escolarização; depois de nós só a Turquia. Somos o último, na proporção do número de alunos no ensino superior para o conjunto da população: depois de nós, ninguém. Somos o último na capitação do consumo de carne: depois de nós, só a Turquia. Somos o último na capitação do consumo de leite, o último na capitação diária de calorias, o último na capitação diária de proteínas, o penúltimo na capitação diária de gorduras (depois de nós só a Turquia). Somos ainda o antepenúltimo, na relação entre o número de médicos e o número de habitantes (depois de nós, só a Jugoslávia e a Turquia) […] Excetuando a Turquia, somos também o país onde as taxas de mortalidade infantil e de mortalidade perinatal se apresentam ainda mais altas» (Sociologia e Ideologia do desenvolvimento, 1968).

No que diz respeito à questão da educação, deixo aqui algumas ideias que podem ajudar a compreender melhor as políticas educativas da Primeira República, as quais, de resto, contrastam com o sistema educativo elitista, patriarcal, livresco, confessional, autoritário e repressivo implementado durante o Estado Novo.  

Já em 1900, Portugal seria um dos países mais pobres da Europa e aquele que tinha a maior percentagem de analfabetos. Para inverter estas cifras, uma das traves mestras da ideologia republicana foi a aposta na educação. Ainda na fase da propaganda do movimento republicano, não era segredo para ninguém que os desígnios da escola republicana passavam por combater o analfabetismo (que, em termos absolutos, de acordo com o Anuário Estatístico de Portugal, relativo ao ano de 1911, rondava os 75,1% — 68,4% homens, 81,1% mulheres), democratizar o acesso à educação, descentralizar e reformar a instrução primária, adotar novos currículos e metodologias pedagógicas, com vista a forjar um cidadão livre e consciente, apto a intervir na modernização do país republicano. Por isso, o Governo Provisório republicano (empossado entre outubro de 1910 e agosto de 1911) aprovou o decreto reformador e estruturante de 29 de março de 1911 (Diário do Governo, n.º 73, 30 de março de 1911, pp. 1341‑1347), acerca do ensino infantil, primário e normal (que formava professores do então chamado ensino primário). O poeta, professor de Ciências Físico-Químicas, pedagogo, divulgador científico e historiador da educação, Rómulo de Carvalho, considerou‑o um «documento notabilíssimo», que, se tivesse sido «minimamente executado», teria colocado o país entre os mais avançados no domínio da instrução (História do Ensino em Portugal: desde a Fundação da Nacionalidade até ao Fim do Regime Salazar­‑Caetano, 1986, p. 665).

 No preâmbulo desse decreto ficou enunciada a filosofia da República em matéria educativa: «o Homem vale, sobretudo, pela educação que possui». Tal máxima teria sequência na expressão auspiciosa do consagrado escritor francês naturalista, Émile Zola, que ficou vertida na mesma lei atrás citada: «Um dia, a Humanidade feliz será a Humanidade que saiba ler e que disponha de uma vontade forte.» O espírito do legislador era, pois, transformar a escola primária no laboratório capaz de formar a alma da Pátria republicana e moldar o «Homem, cidadão e patriota». Para cumprir tal desiderato, a escola pública teria de administrar, através do recurso a uma pedagogia moderna, um ensino que subtraísse a criança à influência da Igreja Católica e a libertasse definitivamente de todos os falsos dogmas, fossem eles os da moral, da religião ou os da ciência. Um ensino público laico: «a religião foi banida da escola. Quem quiser que a dê à criança, no recato do lar, porque o Estado, respeitando a liberdade de todos, nada tem com isso». Porém, um ensino público neutro, «nem a favor de Deus, nem contra Deus», prioritariamente estribado numa moral do dever de solidariedade em prol do bem comum. Ainda um ensino gratuito, inclusivo, obrigatório, prático, utilitário, integral e tendencialmente intuitivo, capaz de preparar os homens e as mulheres, nos planos físico, intelectual e moral, para a «luta da vida».

A aplicabilidade desta verdadeira lei de bases do ensino infantil, primário e normal primário dependia de um conjunto de condições prévias que eram explicadas no referido decreto: a futura refundação do Ministério da Instrução Pública para melhor dirigir, prover e fiscalizar as questões educativas (o primeiro fora fundado, sem grande êxito, em 1870, mas a República só viria a recriar este ministério em 1913); uma administração e assistência escolar dos ensinos infantil e primário mais descentralizadas, que voltaria a depender das câmaras municipais, cuja ação neste domínio seria, contudo, fiscalizada pelo Estado (saliente‑se que os governos da Monarquia Constitucional tinham já criado e depois suprimido esta medida descentralizadora, por a considerarem ineficaz, e a República haveria de seguir os seus passos); a deferência atribuída aos professores de instrução primária, entretanto retratados como os obreiros, os «padres laicos» e «apóstolos» da República e das suas promessas de igualdade social, que, por isso, passariam a receber melhor formação, a auferir remunerações mais dignas, a beneficiar de um melhor estatuto socioprofissional e a depender de concursos de professores mais bem regulamentados e fiscalizados pelo Estado; a obrigatoriedade do ensino para as crianças de todos os sexos dos 7 aos 14 anos; uma regulamentação cuidada do regime e dos currículos das escolas normais primárias destinadas a formar professores primários.

Condições prévias que, por razões políticas, financeiras e sociais, tardaram em chegar ou nunca se cumpriram, impossibilitando a execução prática de muitos dos desideratos contidos na lei. Principalmente, por causa do défice acentuado das contas públicas do Estado herdado da Monarquia Constitucional. Défice que a turbulência política internacional perpetuou, que as cisões verificadas no seio das hostes republicanas não contribuíram para aligeirar, mas também que as reações de setores monárquicos, católicos e até sindicalistas contra um Estado dominado pelo Partido Democrático não ajudaram a superar. Défice financeiro e instabilidade política que, inclusive, acabariam por agravar‑se com a participação do país também na frente europeia da Primeira Guerra Mundial, a partir de 1917.

Em matéria de educação primária — que, por conseguinte, constituiu uma das grandes apostas da política educativa do republicanismo (pois não devemos ignorar aqui as ambiciosas reformas educativas da Primeira República empreendidas também no ensino superior) —, foram demasiados os problemas que o novo regime enfrentou: pouquíssimas escolas, edifícios escolares miseráveis, deploravelmente higienizados e desprovidos de mobiliário e recursos educativos, escassos professores qualificados, salários dos docentes baixos ou em atraso, funcionamento deficiente das escolas normais primárias e ainda absentismo escolar motivado pela vulgarização dos hábitos do trabalho infantil e pela desconfiança que o ensino público laico suscitava nos meios rurais mais conservadores.

A conjugação dos problemas aqui enunciados impediu que o regime republicano vigente entre 1910 e 1926 (minado e boicotado por demasiados acontecimentos e fatores disruptivos) conseguisse implementar de modo consistente muitas das suas reformas educativas justas e promissoras.

Hoje, Portugal conquistou as liberdades e vive em democracia (só os sectários ou os autocratas podem negar ou desprezar tais conquistas). Todavia, persiste em cometer os seus pecados originais e por isso está de novo a afundar-se no ranking dos países europeus em matéria económica e social (após o progresso fugaz proporcionado pela adesão à União Europeia, em 1986). Têm os portugueses disposição para acautelar o seu futuro, capacidades para reformular o seu modo de vida e inspiração para cantar um outro fado?”

Luís Filipe Torgal

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