Site icon Rádio Boa Nova

Opinião: “«Civilizações», uma história alternativa forjada por Laurent Binet”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um artigo intitulado “«Civilizações», uma história alternativa forjada por Laurent Binet”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“Sabemos, hoje, que a história da colonização europeia das Américas não aconteceu da forma épica que aprendemos na escola, há uns anos atrás. Porém, a arte, neste caso a literatura, tem o poder mágico de dar outra vida aos episódios mais soturnos da história.  

Era uma vez… uma história invertida. Imaginemos que um punhado de Vikings alcançou as costas da América Central e do Sul muito antes de Cristóvão Colombo (1492), acabando por se enraizar nestas paragens e mesclar-se com os povos ameríndios. E que esse contacto teria facultado às civilizações ameríndias a domesticação do cavalo e o seu uso como arma de guerra, o domínio das técnicas de forjar o ferro e a imunidade a algumas doenças infetocontagiosas transmitidas pelos europeus.

Graças às três vantagens atrás mencionadas, estas civilizações acabariam por derrotar os invasores espanhóis e provocar a morte inglória de Colombo, na latitude das «Índias» (ocidentais), sem o navegador genovês, sedento de ouro e temente a Deus, ter conseguido retornar da sua viagem para anunciar a sua «descoberta» aos reis católicos de Espanha, Fernando e Isabel. Alguns anos depois, um grupo de incas acossado por uma guerra fratricida e liderado pelo imperador deposto, Atahualpa, decidiu reabilitar as velhas carcaças das naus de Colombo sepultadas em Cuba para aventurar-se no «Mar Oceano». O destino quis que desembarcassem em Lisboa, cidade pujante do «Novo Mundo», no dia do terramoto de 1531 (aqui não se trata de ficção, pois Lisboa sofreu, de facto, antes de 1755, um terramoto e tsunami «horribilis», a 26 de janeiro de 1531, que foi confirmado por fontes coevas, terá destruído um terço da cidade e provocado pelo menos cerca de mil mortos).    

Ameaçados por uma multidão de lisboetas que associaram a presença dos incas ao cataclismo, os intrépidos viajantes de além-mar abandonaram a cidade e rumaram para nascente, na direção de Castela, tendo chegado a Toledo durante um Auto de Fé. Prestes a serem julgados e queimados como heréticos pelos cristãos-velhos adoradores do «deus pregado», os incas adoradores do Sol revoltaram-se, massacraram o exército nativo e escapuliram-se da cidade. Após peripécias inimagináveis, o chefe inca agiu com engenho e arte, tendo acabado por destronar o poderoso imperador Carlos V para tornar-se rei de Espanha e imperador do sacro império romano-germânico (que se estendia da Espanha à Áustria, Alemanha, Países Baixos, Itália e Borgonha) a que chamou império do «Quinto Canto». Atahualpa restabeleceu, depois, a paz com o seu meio-irmão inca e antigo inimigo figadal e inaugurou uma fecunda rota comercial entre a Europa e as Américas — a qual fornecia aos povos pré-colombianos, governados pelo seu meio-irmão, «bebida escura» (vinho), arcabuzes, trigo, «folhas que falam» (livros) e quadros em troca de ouro e prata. Concomitantemente, o mesmo imperador inca impôs na Europa do século XVI, submersa numa atmosfera de intolerância acirrada pela Reforma Protestante e por guerras intestinas, uma organização política estribada numa maior tolerância religiosa e justiça social. Tal organização seria moldada por «As 95 teses do Sol» — um documento revolucionário, universal e alternativo às «95 teses contra as indulgências» (1517), escritas por Lutero —, onde podia ler-se: «O Sol é o deus criador e a fonte de toda a vida; O Sol não exige a morte dos outros deuses. Não tem necessidade disso para conservar a sua primazia nem o seu poder, pois nenhum deles pode atingi-lo; O Sol não é ciumento, não escolhe o seu povo, não salva uma minoria de homens para deixar os outros nas trevas. Ele estende a sua luz benfazeja a todos os homens da terra; O Sol defende os direitos dos pobres; O Sol criou a terra para que todos saboreiem o sal; A terra não se compra nem se aluga nem se empresta com juros; A terra não se açambarca. É atribuída em função das necessidades de cada um; As águas fazem parte da terra e são livres; O peixe é do rio; A caça é da floresta; As florestas pertencem à terra que pertence ao Sol: O Sol não conhece servos. Só conhece homens; Deus é o outro nome do Sol».

Acabei de falar-vos do livro «Civilizações», de Laurent Binet, distinguido com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa e editado recentemente em Portugal pela Quetzal. Sim, é uma história alternativa, uma ucronia delirante, cujos detalhes e o fim não devo aqui antecipar (para não molestar a curiosidade dos leitores). Porém, neste romance alegórico pouco interessa a inverosimilhança da história. O autor serve-se da literatura para vingar os índios, os quais, apesar de também serem possuídos por ambições imperialistas, ostentarem comportamentos cruéis e cometerem massacres, acabam por exercer uma ação colonizadora mais suave do que a colonização que os europeus impuseram nas Américas e isso teria possibilitado uma globalização menos brutal e mais ecológica.

Pela sua originalidade e heterodoxia provocatória, este livro merece ser lido”.

Luís Filipe Torgal

Exit mobile version