No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “Antissemitismo em Portugal”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.
“Antissemitismo em Portugal”
“Os judeus terão chegado à Península Ibérica ainda antes dos romanos, mas foi decerto durante as presenças romana e visigótica, mormente desde o século I e o século V, que se fixaram em maior número e de forma sistemática nestas latitudes. Bem mais tarde, durante a formação de Portugal, participaram na reconquista cristã de Lisboa e no repovoamento do território. A sua comunidade disseminou-se, tornou-se mais numerosa e desempenhou sobretudo funções mercantis, financeiras, artesanais, administrativas e científicas. Por exemplo, muitos judeus eram usurários, funcionários régios, mesteirais, astrónomos ou médicos (embora a legislação canónica proibisse um médico hebreu de assistir um cristão moribundo).
Como pertenciam a uma minoria, praticavam uma religião monoteísta divergente da cristã, viviam em judiarias e adquiriram fama de deicidas (homicidas de Cristo), satânicos, impostores, avarentos e «onzeneiros» (agiotas), foram marginalizados, ultrajados e molestados pela maioria do vulgo cristão instalado nos reinos peninsulares. Foram ainda escarnecidos por artistas, escritores e membros do clero católico, assim como discriminados pelos poderes régios que os colocaram num regime de separação protegida. Nas conjunturas de fome, peste ou guerra, em momentos de catástrofes ou calamidades, o povo erguia a sua ira contra as minorias judaicas (e muçulmanas), provocando violentos tumultos (os pogrom), marcados por ofensas, agressões e homicídios, bem como pela destruição e o saque dos bens dos israelitas. O caso nacional mais brutal é o massacre de Lisboa, ocorrido entre 19 e 21 de abril de 1506, que originou a violação e o assassinato de milhares de judeus conversos e a pilhagem dos seus bens. Este pogrom foi estancado pelos magistrados e o exército real, tendo o monarca D. Manuel I ordenado a repressão e confiscação dos bens de alguns «cristãos velhos» e mouros (adversários dos judeus) envolvidos, o enforcamento dos frades dominicanos do convento de São Domingos (situado na baixa da urbe) instigadores do massacre e o encerramento do convento.
Desde a formação de Portugal que os reis portugueses e a Igreja Católica elevada a religião de Estado, em troca de proteção, alguma autonomia, liberdade religiosa e cultural e da permissão de práticas de agiotagem, exigiam dos hebreus abundantes obrigações e pesados tributos extraordinários: entre eles a dízima ofertada à Igreja Católica ou a capitação de 30 dinheiros como castigo por, alegadamente, terem vendido Jesus Cristo por esse preço. Também, pelo menos desde tempos medievos, que os judeus foram compelidos pelos poderes profano e sagrado instituídos a usarem ao peito uma estrela de pano com seis pontas, proibidos de frequentarem tabernas cristãs, propagarem o judaísmo entre cristãos, blasfemarem contra Cristo, a Virgem e os santos, possuírem escravos cristãos, entrarem nas casas de mulheres cristãs ou receberam-nas nas suas casas e com elas terem relações sexuais.
Muitos judeus expulsos de Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, encontraram refúgio em Portugal. Todavia, o crescimento da presença hebraica no reino e o aumento do seu prestígio exasperou os súbditos residentes e exacerbou as tensões sociais. Por esta e outras razões de caráter politico, social e religioso, o rei D. Manuel I acabou também por reconsiderar e decretar a expulsão dos judeus do reino, em 1496, ou, em alternativa, por ordenar a sua conversão forçada ao cristianismo e encerrar as sinagogas. Assim surgiram os «cristãos-novos», que foram depois interditos de sair do reino, acusados de criptojudaísmo, de corromper a coesão do território nacional e a unidade do catolicismo, e cruelmente perseguidos pela Inquisição estabelecida em Portugal, em 1536, no reinado de D. João III. Muitos esconderam-se sobretudo em Trás-os-Montes e na Beira, em povoações como Belmonte, onde, ao longo de séculos, mantiveram uma vida recatada, conseguindo praticar secretamente, nestas paragens, os rituais religiosos judaicos até à extinção da Inquisição e a instauração, pela nova ordem liberal, dos direitos civis dos judeus, em 1821. A longa história de resistência das comunidades de judeus na região da Beira está bem evocada no «Museu Judaico de Belmonte» (inaugurado em 2005).
Antes da revolução liberal de 1820, já o Marquês de Pombal tinha revogado o uso das designações de «cristão-novo» e «cristão-velho» do vocabulário jurídico, ordenado coimas para quem usasse essas expressões, determinado a queima dos cadastros dos «cristãos novos» e abolido a obrigação de atestados de limpeza de sangue (leis de 1768, 1773 e 1774). Contudo, a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 reconheceram apenas o catolicismo como a única religião oficial dos portugueses e remeteram os outros cultos para o foro privado dos estrangeiros. Foi a Constituição de 1911, criada pela República instaurada a 5 de Outubro de 1910, que aboliu a religião de Estado, reconheceu a liberdade política e civil de todos os cultos, abriu todas as carreiras profissionais aos cidadãos de outras crenças religiosas e confirmou a existência legal da comunidade judaica portuguesa.
No século XIX, as teorias pseudocientíficas da eugenia conjugadas com o milenar, embora, então, mais dissimulada hostilidade antissemita ganharam lastro no contexto do mediático «caso Dreyfus» (1894-1906) (capitão judeu do exército francês injustamente acusado e condenado por traição, decisão que suscitou a divisão da sociedade francesa entre apoiantes e detratores de Dreyfus) e da propagação do texto apócrifo O Protocolo dos Sábios de Sião (Rússia, 1903, editado em Portugal, pela primeira vez, em 1923, com comentários de dois dirigentes das Juventudes Monárquicas Conservadoras), que forjou a existência de uma conspiração judaica para dominar o mundo. Tais acontecimentos exacerbaram as conceções racistas e antissemitas modernas e convergiram na ideologia totalitária e genocida do nazismo que germinou após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Para evocar e certificar as perseguições aos judeus realizadas em pleno século XX, no contexto das antissemitas «Leis de Nuremberga» (1935), da «Noite dos Cristais» (1938), da «Solução final», da Shoá (Holocausto) e da propagação dos regimes fascistas europeus, foi fundado, em 2017, o polo museológico «Vilar Formoso Fronteira da Paz — Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes». Desde 1933, milhares de judeus fugidos ao nazismo que alastrou por grande parte dos territórios europeus, entre 1938 e 1945, no quadro do imperialismo nazi alemão que desembocou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), iniciaram uma nova diáspora forçada. Muitos atravessaram os Pirenéus, cruzaram a Espanha e passaram de comboio a fronteira de Vilar Formoso, para serem acolhidos em Portugal. Uma parte deles ostentava passaportes contendo os vistos concedidos pelo polémico cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes.
Graças aos vistos assinados, contra as ordens de Salazar, por Sousa Mendes e por outros diplomatas portugueses menos mediáticos, como é o caso do republicano arganilense Alberto da Veiga Simões (nomeado, nos anos 30 do século passado, ministro plenipotenciário em Berlim), estes refugiados escaparam a uma morte certa nos campos de extermínio nazis. Foram, depois, distribuídos por Lisboa, Porto e várias estâncias termais e balneares portuguesas (Luso, Curia, Caldas da Rainha, Figueira da Foz, Ericeira, Praia da Maçãs, Sintra, Estoril e Cascais). A maioria esmagadora continuou a sua fuga para as Américas do Norte e do Sul, enquanto uma escassa minoria acabou por se radicar em Portugal, onde reconstituiu as suas vidas. Estes refugiados enfrentaram dificuldades para entrarem e permanecerem no país. Dificuldade que resultaram da política de neutralidade estratégica delineada por Salazar durante a Segunda Guerra Mundial, mas que também foram criadas pela PVDE e o Ministério do Interior, os quais receavam que muitos destes judeus estivessem envolvidos em práticas de espionagem, agitação internacional ou outras ações ilegais. Porém, os refugiados que alcançaram solo nacional acabaram por beneficiar de alguma hospitalidade, pois o Estado Novo (ou «fascismo à portuguesa») não chegou a ser contaminado por conceções eugenistas e antissemitas raciais, apesar de integrar nos seus quadros algumas personalidades que defenderam essas ideias.
As duas valências museológicas atrás citadas localizadas na Beira, distrito da Guarda (a uma distância de 63 km uma da outra), merecem bem uma visita que permitirá aos interessados aprofundarem os seus conhecimentos sobre as temáticas do antissemitismo, do Holocausto e dos refugiados.
Um esclarecimento final: este artigo derivou da frequência da ação de formação «Summer School» 2021 organizado pelo CEIS20 da Universidade de Coimbra e foi inspirado nas leituras de textos assinados por Manuel Viegas Guerreiro, Jesué Pinharanda Gomes, Irene Flunser Pimentel, Maria José Ferro Tavares, Esther Mucznik, Avraham Milgram, Lina Madeira, Cláudia Ninhos, Maria Luiza Tucci Carneiro e Francisco Bethencourt.
A digressão por temas tão importantes e sensíveis como estes convoca-nos inevitavelmente para a máxima tão citada quanto ignorada: «a História não se repete, mas ensina»”.
Luís Filipe Torgal