No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta o artigo “Abril de 1974 e Novembro de 1975. Os vinte meses que abalaram Portugal”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.
“Abril de 1974 a novembro de 1975. Os vinte meses que abalaram Portugal“
“O golpe militar de 25 de Abril de 1974, desencadeado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), derrubou as instituições do Estado Novo e prometeu um novo rumo para o país. O programa do MFA reconhecia que a solução das guerras do ultramar era política e não militar. Previa a transição sustentada para um Estado de Direito, uma democracia pluralista, com preocupações sociais e escorada em igualdades e liberdades cívicas e individuais. E defendia a eleição, por sufrágio direto, secreto e universal, de um presidente da República e de uma Assembleia Nacional Constituinte — incumbida de elaborar uma nova Constituição.
Todavia, nos meses seguintes, as intenções originais deste programa foram subvertidas por golpes e contragolpes militares: 28 de Setembro de 1974, 11 de Março e 25 de Novembro de 1975.
Os poderes do Estado fragmentaram-se por várias instituições e personalidades militares e civis que assumiam poderes paralelos. O Presidente da República nomeado pela Junta de Salvação Nacional (general António de Spínola e, depois de 28 de setembro, general Francisco da Costa Gomes). Os sucessivos Governos Provisórios nomeados pelo presidente da República (presididos, de julho de 1974 a agosto de 1975, pelo coronel Vasco Gonçalves, após a demissão do advogado Palma Carlos, que presidira ao I Governo Provisório). O Conselho da Revolução (criado pelo MFA logo depois do 11 de Março e que viria a fragmentar-se em várias tendências, mantendo enfáticos poderes tutelares, até ser extinto pela revisão da Constituição, em 1982). O Comando Operacional do Continente (Copcon), criado para fazer cumprir as orientações definidas pelo golpe de 25 de Abril, incluiu forças militares especiais, foi dirigido pelo general graduado Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega do golpe de 25 de Abril, até ser abolido, na sequência da intentona de 25 de Novembro.
Portugal soçobrou em confrontos entre várias tendências militares e civis. Uma fação marxista-leninista inspirada nas «democracias populares» da URSS e do leste europeu, que ambicionou coletivizar e estatizar a economia e centralizar os poderes (Vasco Gonçalves e o PCP). Outro grupo mais romântico, indisciplinado, errático, trotskista ou maoista ou castrista, que sonhou com um poder popular, meio castrense e meio proletário, que teria Cuba ou outra utopia distópica terceiro-mundista como referência (Otelo e os seus oficiais e militares do Copcon, os comandantes do Ralis e da Polícia Militar, a UDP e o PSR). Um setor mais amplo que combateu por uma democracia pluralista de tendência socialista ou social-democrata à portuguesa (PS, PPD e o «Grupo dos 9», cujo ideólogo era Melo Antunes, que emergiu do Conselho da Revolução). Uma fação que pelejou contra a implantação de modelos socialistas mais ou menos moderados e desejou uma transição para uma democracia iliberal ou musculada (Spínola, os spinolistas e a sua organização clandestina do MDLP). E ainda um grupúsculo comunista maoista, impetuoso, provocatório e desestabilizador, que odiava o PCP (acusando-o de «revisionista» e «social fascista») e boicotava todas as alternativas vigentes (MRPP).
A 25 de Abril de 1975, as eleições para a Assembleia Constituinte, que tiveram uma taxa mínima de abstenção de apenas 8,5%, deram a vitória ao PS (37,8%), o segundo lugar ao PPD (com 26,3%), apenas o terceiro lugar ao PCP (12,4%), e sufragaram o parlamento mais heterogéneo e inclusivo, no plano académico e em termos socioeconómicos, da II República (ou III República, conforme as opiniões).
Justamente devido a estes resultados e depois da frustrada intentona contrarrevolucionária de 11 de Março, tentada por militares spinolistas, setores mais esquerdistas ligados aos poderes instituídos radicalizaram as suas posições. Começou o Processo Revolucionário em Curso (PREC), que se extremou durante o «Verão Quente» de 1975. Estatizaram-se centenas de bancos, seguradoras e empresas (transportes, siderurgias, hidroelétricas, gás e eletricidade, cimentos, celuloses, tabacos, comunicação social, etc.). Foram ocupadas, por trabalhadores enquadrados por sindicatos e militares, mais de mil herdades no Ribatejo e Alentejo e depois coletivizadas, no âmbito do movimento da Reforma Agrária. A RTP, a Rádio Renascença e vários jornais foram controlados por gente afeta às esquerdas radicais e ao PCP, a qual começou a fazer saneamentos políticos. Alguns partidos mais radicais, à esquerda e à direita, acusados de obstaculizar de modo violento o avanço do PREC, foram ilegalizados (PDC, MRPP e AOC). O Copcon procedeu a prisões indiscriminadas. Soldados das várias forças militares desrespeitaram, ostensivamente, as ordens das hierarquias e desviaram espingardas para as mãos de populares. A embaixada da Espanha franquista foi atacada e pilhada por militantes da extrema-esquerda, perante a passividade de polícias e militares. Operários da construção civil em greve sitiaram S. Bento e a Assembleia Constituinte e sequestram o primeiro-ministro, vice-almirante Pinheiro de Azevedo, e os deputados. O Governo Provisório entrou em greve, enquanto as forças policiais e militares não garantissem as condições normais para o seu funcionamento. A economia do país colapsou. A taxa de inflação alcançou cifras históricas agravadas pela subida brusca do preço do petróleo, o qual atingiu o mundo, depois de 1973, e pôs fim a «30 gloriosos anos» de grande crescimento económico vividos na Europa, desde o pós-guerra.
Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal proclamavam, então, que a dinâmica revolucionária tinha ultrapassado a legitimidade eleitoral. Gonçalves argumentou, em Lisboa e em Almada, que «só há duas posições: ou estamos na revolução ou estamos contra a revolução» e que o país «não pode perder pela via eleitoral aquilo que tanto tem custado a ganhar ao povo português». E o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, numa entrevista impetuosa e polémica, concedida à jornalista antifascista italiana, Oriana Falacci, em junho de 1975, corroborou a mesma tese: «as eleições pouco ou nada têm a ver com a dinâmica revolucionária. […] Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia ao estilo da Europa ocidental. […] Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios. Não será companheiro de viagem das democracias burguesas» (Grandes Entrevistas da História, 1971-1990, Expresso, 2014, pp. 54-74).
O país bipolarizou-se, dividiu-se em norte e sul, tendo-se estabelecido uma fronteira fictícia em Rio Maior, e ficou à beira de uma guerra civil. O sul era controlado pelo PCP e as forças radicais de esquerda. No norte, dominado pelo PS, PPD, CDS, a Igreja Católica, mas também por grupos de extrema-direita, várias sedes do PCP foram assaltadas e destruídas e alguns dos seus militantes espancados.
Esperava-se, a todo o momento, uma revolta armada. A 25 de Novembro de 1975, paraquedistas afetos às esquerdas radicais (que incluíam o MES, PRP/BR, UDP e FSP) e ao PCP, indignados com a iminente passagem à reserva de muitos colegas, com a substituição de alguns comandantes militares e a extinção da Base Escola de Paraquedistas de Tancos, tomaram as bases aéreas de Tancos, Monte Real, Montijo e Ota. Outras forças rebeldes do Copcon, Ralis e da PM assumiram posições estratégicas em Lisboa (ocuparam estradas, aeroporto, depósito de armas de Beirolas, Emissora Nacional, RTP e Monsanto). Ainda hoje, não se sabe com clareza os nomes de quem ordenou estas movimentações militares.
Nesse momento, o presidente da República, Costa Gomes, saiu, finalmente, do estado de aparente torpor e ambiguidade em que se encontrava. Decretou o «Estado de sítio» enquanto unidades militares disciplinadas lideradas por Ramalho Eanes e Jaime Neves conseguiram anular os revoltosos e prender as chefias dos militares sublevados. A revolta foi vencida porque, no momento decisivo, não terá beneficiado do apoio do PCP, que não confiou no espírito libertário de muitos dos revoltosos e terá recebido de Costa Gomes a garantia de que não seria ilegalizado, e até de Otelo, que acabou por rejeitar assumir o papel de putativo líder da insurreição.
No dia 26 de Novembro, a revolução retomou a essência do seu «dia inicial», que estava vertida no primevo programa do MFA. Álvaro Cunhal sustentou que o 25 de Novembro foi um golpe militar inserido no processo contrarrevolucionário. Pelo contrário, Mário Soares considerou que o 25 de Novembro representou «um ponto de viragem que marcou […] o fim da desfilada em que estávamos a correr para o abismo. Foi um recomeço; um regresso à pureza inicial do 25 de Abril. Um rasgar de novos horizontes de esperança, com a consolidação da democracia pluralista, num ambiente político de convivência cívica, de alguma paz social e de concórdia nacional» (Maria João Avillez, Soares. Ditadura e revolução, 1996, p. 492). Maria Inácia Rezola, historiadora com vasta obra publicada sobre o período da revolução e recentemente nomeada para comissária das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, reconheceu que o 25 de Novembro de 1975 foi essencial para acelerar a consolidar a democracia.
No rescaldo do 25 de Novembro, Melo Antunes referiu que a participação do PCP era indispensável à construção do socialismo pluralista. Com efeito, ao longo destes 48 anos, este partido tem desempenhado um papel insubstituível, batendo-se, de forma patriótica e orgânica, no respeito pela Constituição da II República, pelos direitos laborais e cívicos dos mais desprotegidos. Porém, o PCP foi perdendo milhares de votos, a ponto de, nas últimas eleições legislativas, ter obtido apenas 4,3% dos votos e elegido 6 deputados. Entretanto, o seu dogmatismo ideológico levou-o a cometer um verdadeiro suicídio político: assumiu posições negacionistas e absurdas sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Há já por aí quem anuncie e festeje efusivamente uma eventual extinção do PCP. Alguns desses profetas da desgraça que se consideram muito democráticos ainda não terão compreendido que isso iria/irá escancarar o caminho ao Chega ou a outros grupos radicais — populistas, oportunistas, trauliteiros, racistas, xenófobos, despóticos, proselitistas, sebastianistas, ultranacionalistas e contorcionistas. Estes novos partidos e movimentos, que já vivem entre nós, irão assumir o ónus da agitação social, monopolizar a rua e as tribunas políticas, agudizar a polarização das opiniões, semear o ódio entre os portugueses e tornar a governação e a vida do país mais insustentável”.
Luís Filipe Torgal