Criada em janeiro do corrente ano, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa trabalha com o objetivo de “recolher testemunhos de pessoas que foram vítimas desde os anos 50 até ao presente”.
Em entrevista à Rádio Boa Nova, Ana Nunes de Almeida, socióloga e elemento da Comissão, começou por referir que “esta iniciativa insere-se, em primeiro lugar, numa política diferente que vem sendo reforçada pelo Papa Francisco, no sentido de a Igreja Católica olhar de frente para um problema que tem nas suas mãos, a questão do abuso sexual contra crianças e pessoas vulneráveis”.
A considerar que, “com este Papa há uma viragem histórica”, a investigadora da Universidade de Lisboa avançou que, em dezembro de 2021, a Conferência Episcopal Portuguesa convidou Pedro Strecht, pedopsiquiatra, para coordenar o estudo e constituir a equipa que, para além de Ana Nunes de Almeida, conta com Daniel Sampaio, médico psiquiatra, Álvaro Laborinho Lúcio, juiz conselheiro, Filipa Tavares, Assistente Social e Catarina Vasconcelos, membro exterior, representante da sociedade civil.
A socióloga, que se recusa a falar em “denúncias” mas sim em testemunhos “porque a equipa não é policial”, sublinha que o estudo pretende “dar voz ao silêncio, ou seja, criar instrumentos, através dos quais, qualquer pessoa que tenha sido vítima possa tomar a palavra e falar sobre a experiência muitas vezes guardada durante décadas por vergonha e por sentimento de culpa”.
À Rádio Boa Nova, a investigadora adiantou que a Comissão “teve uma onda inicial muito grande de adesão onde atingiu 214 testemunhos”. “Agora estamos bem acima disso”, frisou.
Considerando que “na sociedade portuguesa o tema ainda é tabu e que as pessoas não gostam de falar no assunto nem enfrentar o problema, a Comissão criou, “através de telefone e site, a possibilidade de todas as pessoas poderem falar da experiência de uma forna anónima, sem serem expostas”. De acordo com Ana Nunes de Almeida, os testemunhos devem “tomar a palavra” através do contacto 917110000 (das 10h00 às 20h00) e do site darvozaosilencio.org, sempre de forma anónima, sem mencionar o nome do abusador ou abusadora”.
“Pede-se, sobretudo, para que a pessoa nos dê informação sobre o que se passou. Não tenham vergonha. Os acontecimentos podem ter prescrito, mas o sofrimento não prescreve”.
A socióloga salienta que “o estudo não é contra a Igreja Católica, até porque foi a Conferência Episcopal Portuguesa que quis conhecer a realidade”. Trata-se, por isso, de um “trabalho a favor da sociedade portuguesa, de consciência de cidadania e de respeito pelos direitos das crianças que não podem ser objetos nas mãos dos adultos”.
Apesar de não se considerarem “forças policiais que denunciam casos”, os especialistas pretendem “que o estudo tenha efeitos práticos”. Assim sendo, “no caso de os abusos estarem a ocorrer no presente, mesmo anónimos são enviados para o Ministério Público porque são crimes públicos”.
Após três meses desde a criação da Comissão, a investigadora confessa que “têm sido meses de exigência ao lidar com o lado escuro da realidade”. Ainda assim, os especialistas encontram-se “muito motivados para levar o estudo até ao fim”.
“Tem sido uma experiência muito intensa, de enriquecimento humano”, afirmou, destacando a “coragem extraordinária” das testemunhas.