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Opinião: “As origens do fascismo. Notas sobre o livro de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século”

No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta “As origens do fascismo.Notas sobre o livro de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século”. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.

“A literatura tem múltiplas utilidades. Uma delas será o seu contributo para a construção de cidadãos melhor esclarecidos e de sociedades mais fraternas. Creio que o livro, aqui evocado, de Antonio Scurati, Mussolini, o filho do século, constitui um bom exemplo do poder cívico da literatura. Embrenhemo-nos, pois, nos meandros da intriga histórica narrada por Scurati, ao longo de 850 páginas.

A I Guerra Mundial terminou com a Itália a combater ao lado dos vencedores. Porém, como proclamou o poeta guerreiro futurista Gabriele D`Annunzio, Roma obteve uma «vitória mutilada». O país abandonou, humilhado, a Conferência de Paz de Paris (1919-20), porque os seus aliados americanos, ingleses e franceses quebraram o prometido: não reconheceram à Itália o direito de ocupar a Dalmácia e Fume, nem tão-pouco lhe concederam as indemnizações que reivindicava.

Como outros países europeus dilacerados pelas sequelas da guerra (onde devemos incluir Portugal), a Itália mergulhou no caos político, económico e social. Resvalou para um ambiente de guerra civil. De um lado, os «vermelhos»: movimentos socialistas que — impulsionados pelo êxito da Revolução Soviética de outubro de 1917 — lançaram no país uma vaga de greves, manifestações, ocupações de fábricas e terras, enquanto urdiam a revolução proletária. Do outro lado, os «negros»: movimento dos Fasci di Combattimento, fundado na Piazza de San Sepolcro, em Milão, a 23 de março de 1919, constituído por veteranos e heróis da guerra entretanto desmobilizados e enjeitados pelo Estado (os sinistros Arditis), mas também por futuristas, anarcossindicalistas e outros vagabundos, delinquentes, recalcitrantes e arrivistas ultranacionalistas de ocasião. Os esquadrões dos Fasci, bem armados e treinados nas táticas da guerra das trincheiras, direcionaram todo o seu ressentimento, ódio e violência contra as fações socialistas. No meio, um Estado demoliberal decadente, corrupto, falhado, despojado de sensibilidade social, incapaz de impor a ordem pública, impotente para granjear consensos na sociedade civil e reconstruir um país arruinado pela guerra e esquartejado pelos combates político-ideológicos internos.  

Mussolini (1883-1945) iniciou a sua carreira política na ala revolucionária do Partido Socialista Italiano. Dirigiu o jornal socialista Avanti! desde 1912. Todavia, quando o conflito mundial rebentou, passou de apóstolo sincero e apaixonado da neutralidade absoluta, subscrita pela maioria das fileiras socialistas, a apóstolo sincero e apaixonado da intervenção na guerra. Por isso, logo em 1914, confrontou a direção do Partido Socialista, abandonou o Avanti! e criou o jornal Il Popolo d´Itália, que haveria de tornar-se o órgão oficial do futuro Partido Nacional Fascista (PNF). Desse periódico declarou guerra aos seus camaradas de outrora, os quais acabaram por acusá-lo de indignidade política e moral e deliberaram a sua expulsão do partido. Fundou os Fasci di Combattimento, corpo político-militar ultranacionalista e antissistema atrás mencionado que, todavia, apresentou um programa político que quase reproduzia o manifesto dos socialistas revolucionários: política externa não subserviente; lei eleitoral mais inclusiva; abolição do senado; reformas laborais generosas; distribuição pelos camponeses de terras não cultivadas; escola pública laica; impostos extraordinários progressivos sobre o capital; expropriações parciais de todas as riquezas; confiscação dos bens das congregações religiosas.

Em 1919, este movimento obteve cifras eleitorais insignificantes. Todavia, as clivagens insanáveis no seio dos «vermelhos», entre socialistas reformistas e comunistas bolcheviques, desgastaram irremediavelmente estes adversários viscerais dos «negros». Pelo contrário, os fascistas, apesar das recorrentes altercações internas entre os seus irredutíveis próceres, reergueram-se e revelaram mais pragmatismo. Uniram-se no PNF, fundado no congresso de Roma, em novembro de 1921, e rasgaram o programa dos Fasci. Tornaram-se «antidoutrinários». Converteram-se numa síntese de todas as afirmações e todas as negações republicanas, monárquicas, socialistas, democratas, conservadoras, nacionalistas e quantas mais. A elasticidade ideológica do movimento e a astúcia amoral e maquiavélica do seu Duce, Mussolini, tornou-os «revolucionários ou reacionários», consoante as circunstâncias. O fascismo ressurgiu e propagou-se como uma epidemia, adaptando o seu discurso demagógico e práticas agressivas às circunstâncias do momento. Compreendeu que para conquistar o poder teria de recorrer aos expedientes mais perversos, de modo a persuadir as elites sociais e as massas proletarizadas, desqualificadas ou aterrorizadas: a mentira, o crime organizado, os espancamentos, a banalização da violência, a fraude eleitoral e até a união fugaz e oportunista com os partidos burgueses conservadores moderados do Bloco Nacional. União que, aliás, lhes foi oferecida por estes nacionalistas, atemorizados com a «peste» bolchevique, e que haveria de legitimar os fascistas e proporcionar a eleição para o Parlamento dos seus primeiros deputados, em maio de 1921. Os «negros» ganharam um novo protagonismo dentro do órgão primordial da democracia. Mas, evidentemente, não ficaram saciados. Em outubro de 1922, os Camisas Negras marcharam sobre Roma e através deste golpe de mão (no qual o Duce assumiu uma posição ambígua e de retaguarda) tomaram o poder, a convite do atemorizado rei Vítor Emanuel III, que nomeou o acrobata político Mussolini presidente do Governo. O agregador dos fascistas entretanto promovido a líder providencial dos italianos tomou posse perante um parlamento apinhado e entusiástico, que esqueceu depressa o terror provocado pelas hordas fascistas e sonhava assistir à alvorada de uma nova era de glória e prosperidade. O discurso de Mussolini foi insolente e premonitório para com o hemiciclo e os seus deputados: — «Senhores! Aquilo que hoje pratico, neste auditório, é um ato de deferência formal para convosco e pelo qual não vos peço nenhum atestado de reconhecimento concreto. […] Podia fazer deste hemiciclo surdo e cinzento um acampamento de fantoches. […] Podia ter fechado a porta do Parlamento e constituir um governo de fascistas. Podia, mas, pelo menos por agora, não quis.»

Não quis naquele momento, mas fê-lo nos anos seguintes. Conquistada a máquina do Estado, os fascistas continuaram a recorrer a brutais ações de violência e, depois, a descaradas fraudes eleitorais para dizimarem os seus adversários externos e internos e vencerem com maioria absoluta as eleições legislativas de 1924. A trama macabra do assassinato do intrépido líder socialista Giacomo Matteotti por sicários da «Tcheka Fascista», a mando do Duce, e que quase fez cair o seu governo, são narrados com singular subtileza na parte final do livro.

O que atrás ficou dito e muito mais pode ler-se no primeiro volume deste longo, minucioso e empolgante romance de Scurati (circunscrito entre 1919 e 1925). Os dois volumes seguintes desta trilogia ainda estão na forja. Como podemos classificar este livro? Uma narrativa romanesca onde desfilam personagens tragicómicas concretas — desordeiros, arrivistas, politiqueiros, facínoras, alienados, demagogos, fanáticos, idealistas e incautos. Sucedem-se episódios rocambolescos, impressivos — contados com uma sedutora linguagem literária —, mas verosímeis, assustadoramente reais, bem sustentados por trechos de documentos da época, que compõem um fresco lancinante da Itália do pós-guerra. O autor adverte, numa nota preambular do livro: «não há um só acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrados que não esteja documentado e/ou testemunhado autorizadamente por mais de uma fonte». Em suma: um «romance documental», que busca uma representação literária verídica (ainda que não historiográfica) do fascismo original.  

O livro termina com o famoso discurso proferido pelo primeiro-ministro, Mussolini, no Parlamento, a 3 de janeiro de 1925, que marca o enterro da democracia, perante o silêncio fúnebre (cúmplice e covarde) de todos os deputados. Conhecemos o fim da história que ainda fica por contar na obra aqui evocada: com a complacência do povo e de quase todos os políticos moderados, os fascistas dirigidos pelo seu «bom tirano» suprimiram as oposições remanescentes, implantaram o Estado totalitário e iniciaram uma política de conquistas militares que os levaria à aliança com Hitler e o nazismo alemão. Depois, o terrorismo nazi-fascista projetou o mundo para a apocalíptica II Guerra Mundial (1939-45) e o Holocausto, que terminariam com a execução de Mussolini, o colapso da Itália e do seu povo.

Importa concluir que a obra de Scurati, editada pela ASA, é uma empolgante lição de História. Habilita-nos a conhecer o passado e o presente da Itália, mas também da Europa e do mundo. Leva-nos a intuir que a História não tem um movimento retilíneo, pois replica dolorosamente os erros do passado. Em última análise, ajuda-nos a compreender a génese e o destino dos chamados movimentos «populistas» atuais e as ambições, fobias e idiossincrasias dos seus chefes, acólitos e adeptos.

Por isso, caro leitor, se deseja mesmo captar a atmosfera das sociedades de hoje e desvendar como emergem e triunfam os manipuladores de massas do século XXI, recomendo-lhe a leitura desta extraordinária narrativa sobre a ascensão do primeiro movimento fascista e do seu criador”.

Luís Filipe Torgal

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