No espaço de Opinião na Rádio Boa Nova, Luís Filipe Torgal apresenta um texto alusivo à revolução de 28 de maio de 1926. Luís Filipe Torgal é professor de História do Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital, investigador e colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20) e autor de vários livros e artigos científicos ou de intervenção cívica e conferencista.
“A revolução de 28 de maio de 1926 e o fim da Primeira República”
«A Ditadura Militar substituiu os ideais
republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade
pelos ideais de cavalaria, infantaria e artilharia» (Brito Camacho, 1930)
“A Primeira República foi implantada a 5 de outubro de 1910, através de uma rebelião militar gerada pelo Partido Republicano Português, a Maçonaria e a Carbonária. Os seus protagonistas inspiraram-se nos ideais da Revolução Francesa de 1789, nas ideologias socialistas e nas conceções racionalistas e positivistas difundidas no século XIX.
Uma Assembleia Nacional Constituinte retintamente republicana aprovou a Constituição de 1911, que arquitetou um sistema parlamentarista, onde os poderes do Presidente da República e do Governo estavam cerceados pelo Congresso formado pela Câmara dos Deputados e o Senado.
Os republicanos encontravam-se empenhados em construir um regime demoliberal enquadrado por genuínas preocupações sociais. Daí a Constituição republicana suprimir os privilégios de nascimento e os foros de nobreza. Daí o governo provisório e os governos constitucionais, saídos da revolução, decretarem a lei da greve, leis da família e leis laborais progressistas, que tencionavam mitigar as desigualdades. Daí a obsessão dos republicanos combaterem o analfabetismo, através da escolaridade obrigatória e gratuita para todas as crianças dos 7 aos 14 anos, da abertura de mais escolas, da adoção de novos currículos e de pedagogias mais humanistas, do investimento na formação de professores e no aumento dos seus salários. Daí a publicação de arrojadas leis anticlericais que tinham o desiderato de criar cidadãos livres e emancipados dos dogmas e dos preconceitos impostos pela Igreja Católica. Uma Igreja Católica que, na perspetiva dos republicanos, estava dependente de um Papa que interferia de modo despótico na vida interna das nações e era constituída por um clero conivente com as velhas elites monárquicas.
Mas a Primeira República nunca conseguiu democratizar-se e socializar-se. E acabou sequestrada pelo hegemónico Partido Republicano Português(vulgo Partido Democrático)entrincheirado em torno do seu líder, Afonso Costa, até à revolução sidonista de dezembro de 1917. Depois do assassinato do ditador populista Sidónio Pais (14 de dezembro de 1918), do colapso do sidonismo e da derrota da Monarquia do Norte (janeiro de 1919), o partido atrás citado resistiu e manteve a sua preponderância, mas acabaria dividido e dirigido por personalidades bem menos prestigiosas.
A obstinação do Partido Democrático e do seu líder carismático Afonso Costa por não suavizar a «intangível» Lei da Separação (do Estado das Igrejas) — que penalizava excessivamente a Igreja Católica e dificultava a liberdade religiosa — originou uma condenação do regime pelo Papa e uma consequente resistência da maioria do clero e dos crentes à República. Mais, a decisão de Afonso Costa de conduzir Portugal a uma intervenção total na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Inglaterra e da França, na frente ocidental europeia e nas frentes africanas, garantiu a preservação das colónias portuguesas. Todavia, agravou as cisões entre os republicanos, acirrou as oposições monárquicas e católicas, mergulhou de novo o país na ameaça da bancarrota, inviabilizou a concretização do programa demoliberal e social republicano, originou uma intrusão dos políticos nas instituições militares e descredibilizou o regime perante as classes médias, o proletariado e os militares.
O contexto económico e social caótico onde naufragaram as nações no rescaldo da guerra impediu os republicanos de redimir e consolidar a Primeira República. Na Itália, nasceu, em 1921, o Partido Nacional Fascista, de Mussolini, que tomou o poder, no ano seguinte. Na Alemanha, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores (Partido Nazi) formou-se, em 1920, e tentou conquistar o poder através de um golpe de estado ocorrido em novembro de 1923. Hitler e o nazismo teriam de esperar pela nova derrocada económica e social europeia ditada pelo Crash da Bolsa de Nova Iorque (1929) e a Grande Depressão, para capturarem o Estado Alemão, em 1933. Noutros países da Europa vivia-se um combate não menos implacável entre fações socialistas internacionalistas e fações ultranacionalistas e autoritárias de teor «fascista».
Em Portugal, os governos republicanos continuaram a tomar posse e a desabar a uma velocidade estonteante, sem disporem de qualquer margem política e social para concretizarem projetos reformistas coerentes de salvação nacional. Verdadeiramente, ninguém respeitava a Constituição de 1911. O Partido Democrático, cada vez mais debilitado, continuava a manipular e a ganhar as eleições, e os restantes partidos conspiravam para o derrubar pela força. Por estas razões, a Primeira República foi agonizando num pântano de instabilidade crónica, até ser definitivamente derrubada por um pronunciamento militar ocorrido a 28 de maio de 1926.
O pronunciamento teve três chefes militares: o general Sinel de Cordes, simpatizante monárquico integralista, líder oculto do golpe e próximo do discreto mas hábil general republicano conservador Óscar Carmona; o general Gomes da Costa, veterano das campanhas de «pacificação» de África e da Primeira Guerra Mundial, crítico recalcitrante dos políticos e conhecido por um temperamento imprevisível; e o almirante Mendes Cabeçadas, herói do 5 de outubro e republicano moderado.
Os revoltosos dividiam-se em duas fações antagónicas: uma revolucionária de direita, que desejava instaurar um governo militar oposto aos partidos; a outra reformista, que acreditava ser possível reabilitar a República, extirpar as suas enfermidades e retornar à pureza inicial dos seus ideais. Ambas pretendiam acabar com a supremacia política do Partido Democrático.
A primeira fação, chefiada por Gomes da Costa, anunciou duas proclamações que declaravam a necessidade de o Exército implantar um «governo forte», com a «missão [de] salvar a Pátria» de uma «minoria devassa e tirânica» de políticos «irresponsáveis». A segunda fação, liderada por Mendes Cabeçadas, anunciou um programa que defendia um regime republicano regenerado, que reduzisse as despesas e regularizasse as contas públicas, organizasse uma justiça independente e célere e reorganizasse e modernizasse as forças militares.
Mendes Cabeçadas presidiu a um primeiro Governo, que incluía Salazar como ministro das finanças, Gomes da Costa na pasta da Guerra e Óscar Carmona na pasta dos Negócios Estrangeiros. Porém, Gomes da Costa discordou da atribuição de algumas pastas ministeriais, rejeitou as alegadas fidelidades republicanas e maçónicas mantidas por Cabeçadas, exonerou-o e assumiu ele próprio o cargo de presidente de um novo ministério, bem como as regalias de chefe de Estado interino. Esses dois governos duraram poucos dias. As decisões erráticas e extemporâneas de Gomes da Costa de exonerar os seus ministros António Claro, Óscar Carmona e Gama Ochoa, de acumular funções ministeriais e personalizar o poder deixaram-no isolado. Representantes das Forças Armadas encabeçadas por Sinel de Cordes ordenaram a sua demissão, prisão e exílio nos Açores. A 9 de julho de 1926, Óscar Carmona assumiu os cargos de presidente de um novo ministério e de ministro da Guerra. Em novembro do mesmo ano, assumiu também a presidência de República, caucionou e consolidou a nova solução ditatorial e viria a tornar-se o principal sustentáculo de Salazar.
Entretanto, perante a adesão alegadamente maciça e nacional à insurreição militar de 28 de maio, que eclodira em Braga e se estendera a outras cidades do país, o último governo do Partido Democrático, presidido por António Maria da Silva, demitiu‑se, as Câmaras foram dissolvidas, o Parlamento fechou e o presidente da República, Bernardino Machado, resignou. O historiador, António José Telo, escreveu que «nem o famoso bom povo republicano, nem as milícias, nem os comités de sargentos, nem os sindicatos, nem os partidos, nem sequer os responsáveis políticos lutaram por ela [República]» (Primeira República II. Como Cai Um Regime, 2011). Assim, a Primeira República morria, aparentemente, esgotada e enjeitada por todos.
Depois de um momento de indefinição sobre o destino da revolução, começou um novo ciclo na vida política do país. Primeiro moldado pela Ditadura Militar (1926-1933), onde foram instauradas as bases embrionárias da censura e repressão e o défice das contas públicas atingiu cifras inauditas. Perante a incompetência administrativa demonstrada pelas governanças militares, Salazar foi nomeado ministro das finanças, em 1928, com o poder de disciplinar os gastos de todos os ministérios e a missão de alcançar rapidamente a estabilidade financeira. Assim, iniciava-se o processo de transição para o Estado Novo (1933-1974), o qual, como afirmou Salazar — entretanto promovido a «salvador da pátria» —, numa entrevista concedida, em 1933, ao seu mestre da propaganda, António Ferro, era uma «ditadura que se aproximou, evidentemente, da ditadura fascista, no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social». Importa referir que os dois regimes autoritários que sucederam à Primeira República acabaram ainda por sofrer, entre 1927 e 1938, uma resistência vigorosa das oposições republicanas democráticas, socialistas, comunistas e anarquistas – resistência que, contudo, acabaram por esmagar.
O primevo regime republicano português caiu sem cumprir as suas promessas idealistas e voluntaristas de modernizar, democratizar e socializar o país e desse modo refundar e redimir a pátria. Não obstante, pelo que atrás ficou dito, impõe-se esclarecer que a Primeira República esteve muito longe das representações redutoras divulgadas por ideólogos da propaganda do Estado Novo, como João Ameal, que a caricaturaram como uma «balbúrdia sanguinolenta», ou propagadas por historiadores recentes, que viram nela uma aberração ideológica impulsionada por alguns intelectuais maçónicos, urbanos, ambiciosos e irresponsáveis. A função da História não é construir representações maniqueístas (e panfletárias) do passado, nem julgar de modo anacrónico os seus protagonistas, mas tentar compreendê-lo e representá-lo de forma objetiva, sustentada e problematizadora”.
Luís Filipe Torgal